Sociedade

CABO DELGADO EM DISPUTA: TEORIA DA MARGINALIZAÇÃO ESTRATÉGICA E RECONFIGURAÇÃO TERRITORIAL

Foto: Estacio Valoi /Palma/cabo-delgado-

Jerry Maquenzi & Estácio Valoi

 

Cabo Delgado tornou-se, nas últimas duas décadas, o epicentro de múltiplas disputas que ultrapassam o domínio provincial. O que ali se desenrola é mais do que uma guerra – é a tentativa de redefinir quem tem o direito de existir, produzir e governar no território. A província, historicamente marginalizada pela ausência de investimento público e por políticas centralizadas, converteu-se em alvo da cobiça global após a descoberta das suas vastas reservas de gás natural e minerais preciosos.

Entretanto, o que deveria ser uma oportunidade de desenvolvimento transformou-se num processo de fragmentação social, deslocamento forçado e militarização. O crescimento das indústrias extractivas não trouxe prosperidade às comunidades locais, mas acentuou o abismo entre a riqueza gerada e o bem-estar da população.

O que observamos em Cabo Delgado é uma marginalização deliberada, administrada com precisão política. A pobreza, a violência e a ausência do Estado não são simplesmente sintomas de um fracasso institucional – são mecanismos funcionais de governo e acumulação. É neste contexto que propomos a Teoria da Marginalização Estratégica (TME), como ferramenta conceptual para compreender a lógica política e territorial da exclusão planeada.

Esta teoria nasce da observação empírica, das investigações realizadas junto a comunidades afectadas, líderes locais e actores institucionais, e busca oferecer uma leitura mais coerente sobre os processos de poder que reconfiguram Cabo Delgado sob o disfarce do desenvolvimento.

 

  1. Fundamentos da Proposta: Da Marginalização Estrutural à Marginalização Estratégica

A marginalização é um conceito amplamente discutido nas ciências sociais (Fassin, 1996). Autores como Hanlon e Smart (2008), Pitcher (2003) e O’Laughlin (2000) descreveram a marginalização estrutural como produto de processos históricos de desigualdade – heranças coloniais, centralização administrativa e dependência económica. Trata-se de um padrão duradouro que opõe o centro político e económico (Maputo e o Sul) às províncias periféricas (Norte e Centro).

Contudo, essa explicação é insuficiente para compreender o fenómeno actual em Cabo Delgado. Aqui, a marginalização não decorre apenas da negligência histórica, mas de um cálculo estratégico. A exclusão é planeada, administrada e instrumentalizada para facilitar a apropriação de recursos e o controlo político do território.

Assim, propomos distinguir dois conceitos:

  • Marginalização estrutural: produto da herança histórica e institucional de desigualdades regionais;
  • Marginalização estratégica: uso deliberado da exclusão como instrumento activo de poder e reorganização territorial.

A marginalização estratégica pressupõe que a ausência é uma forma de presença, e que o Estado não falha – ele actua selectivamente. A precariedade torna-se uma tecnologia de governo, e a vulnerabilidade das populações, um recurso político.

  1. O Contexto Empírico: O Terreno Onde a Teoria Emerge

Desde a descoberta das reservas de gás natural na Bacia do Rovuma, Cabo Delgado foi reconfigurada como fronteira global de acumulação. As projecções de investimento ultrapassaram 60 mil milhões de dólares, atraindo multinacionais como a TotalEnergies, ExxonMobil e ENI. Contudo, segundo estimativas recentes (INE, 2023a), a população da província registou despesas mensais per capita mais baixas do país, 1.031,00 meticais contra 3.449,00 e 3.972,00 meticais, das províncias de Maputo-cidade e Maputo-província, respectivamente, e 25% dos jovens estão desempregados ou subempregados. Apenas 5,9% dos jovens da província de Cabo Delgado são assalariados, contra 61,8% dos jovens, da cidade de Maputo e 14% da média nacional (INE, 2023b).

Os contrastes são gritantes:

  • Enquanto Palma e Afungi concentram infraestruturas modernas, electrificação e estradas, os distritos de Muidumbe, Mueda, Mocímboa da Praia, Macomia e Nangade vivem sob ruínas e deslocamento forçado;
  • As promessas de reassentamento e compensação raramente foram cumpridas (Valoi, 14.08.2025);
  • De acordo com dados da Organização Internacional para as Migrações (OIM) o número de deslocados internos, em determinados anos, já ultrapassou 1,3 milhões de pessoas desde 2017;
  • O PIB provincial cresceu 19% impulsionado pelo sector extractivo (o seu peso é de 79,1% no PIB provincial) (INE, 2023c), mas a despesa média per capita dos agregados familiares caiu 12% no mesmo período.

Esses dados ilustram o que denominamos de “paradoxo do crescimento excludente” – quanto mais a província cresce economicamente, mais as comunidades locais empobrecem. É esse paradoxo que dá fundamento empírico à Teoria da Marginalização Estratégica.

  1. A Teoria da Marginalização Estratégica (TME): Definição e Postulados

A Teoria da Marginalização Estratégica (TME) é uma proposta original, desenvolvida para compreender os processos de exclusão deliberada em contextos de extração de recursos e violência política. Ela parte de um princípio simples, mas disruptivo: a marginalização é uma escolha política e não um acidente histórico.

Enquanto teorias clássicas, como a do “Estado fraco” ou da “falência institucional”, interpretam a ausência de serviços e a violência como falhas do Estado, a TME sugere o contrário: o Estado actua estrategicamente por meio da omissão, utilizando a precariedade como instrumento de controlo.

 

 

A TME organiza-se em quatro postulados fundamentais:

Postulado 1: A exclusão é uma ferramenta de governabilidade

O Estado e os actores económicos produzem deliberadamente zonas de exclusão para controlar populações e reorganizar o território. A precarização e o abandono funcionam como mecanismos de administração política – a miséria é gerida, não combatida.

Postulado 2: A violência é um dispositivo de reconfiguração territorial

A violência (armada, institucional ou simbólica) serve para deslocar populações, redefinir fronteiras e abrir espaço para a exploração de recursos. A guerra, portanto, é uma forma de engenharia espacial.

Postulado 3: A economia extractiva legitima a exclusão

O discurso do desenvolvimento e da geração de emprego é usado como justificativa moral para a expropriação e o deslocamento. O “progresso” serve de retórica para normalizar a desigualdade.

Postulado 4: A marginalização é selectiva e hierarquizada

A exclusão é distribuída conforme hierarquias sociais e territoriais. Jovens rurais, mulheres, deslocados e minorias religiosas são os principais alvos, compondo o que Achille Mbembe chamaria de “economia da morte social”.

  1. Aplicação Empírica dos Postulados: O Caso do Norte de Cabo Delgado

 

  • Postulado 1.

Nos distritos de Palma, Mocímboa da Praia e Macomia, a ausência do Estado é selectiva. Enquanto escolas e centros de saúde colapsaram, estradas e bases militares foram construídas em função das empresas de gás. Em 2019, cerca de 1500 famílias foram reassentadas em Afungi, em Palma, muitas reassentadas sem compensação justa e sem acesso a terra arável. A ausência, neste contexto, é funcional – ela impede a resistência, gera dependência e permite ao Estado e ao capital redesenharem o território segundo seus interesses. Neste contexto de ausência que em 2021 o Governo aprovou o pedido de atribuição de 12.000 hectares de terras em Palma a favor do Centro de Promoção de Desenvolvimento Económico de Cabo Delgado (CPD) sem consulta pública (Beula, 2022).

  • Postulado 2.

De 2017 a 2025, mais de 6.250 mil mortos e 1.1 milhão de deslocados resultaram do conflito armado. As zonas mais afectadas coincidem com as áreas mais ricas em gás, rubis e grafite. A violência funciona, assim, como instrumento de limpeza territorial. O medo desloca populações e cria “zonas livres” para megaprojectos.

A militarização – incluindo a presença de forças estrangeiras e empresas privadas de segurança – transformou o território em propriedade controlada. O espaço público tornou-se um activo securitizado.

  • Postulado 3.

O discurso de “reconstrução” e “resiliência” têm servido mais para legitimar o poder do que para transformar as condições de vida. Embora se anunciem fundos significativos (cerca de 166 milhões de dólares), pouco se traduz em melhorias concretas para as populações deslocadas. A reconstrução é conduzida por elites políticas e empresariais, com mínima participação comunitária (Maquenzi, 05.09.2025).

O que se apresenta como “inclusão produtiva” é, na verdade, gestão da pobreza – programas temporários e assistenciais que mantêm a dependência. A retórica da esperança funciona, assim, como mecanismo de apaziguamento, criando a ilusão de progresso num contexto de exclusão persistente.

  • Postulado 4.

O território de Cabo Delgado está a ser redesenhado sob uma nova lógica espacial. As zonas produtivas tradicionais (pesca, agricultura, comércio local) são substituídas por corredores extractivos controlados por empresas e forças armadas. Palma (Afungi) e Montepuez (Nairoto e Namanhumbir) tornam-se ilhas de infraestrutura, cercadas por cinturões de pobreza e deslocamento.

A população local é forçada a viver nas margens do desenvolvimento, confinada a zonas de reassentamento sem condições mínimas. As redes comunitárias são fragmentadas e os laços tradicionais de solidariedade rompem-se.

O resultado é a criação de duas geografias simultâneas:

  • A geografia do capital, caracterizada por estradas, segurança privada, electrificação e contratos internacionais;
  • A geografia da vida precária, onde os pobres lutam para sobreviver à sombra da promessa do progresso.

Esse processo representa o que podemos chamar de colonialismo interno, em que o próprio Estado actua como mediador de interesses externos e reconfigura o território para manter o centro político distante, mas dominante.

  1. Implicações Políticas e Teóricas

A Teoria da Marginalização Estratégica oferece uma nova chave interpretativa para compreender as relações entre Estado, capital e território. Ela propõe que a precariedade é produzida e gerida, e não simplesmente tolerada.

Inspirando-se nas leituras críticas de Achille Mbembe (2016) (necropolítica) e David Harvey (2004) (acumulação por despossessão), a TME avança ao identificar o papel activo do Estado na orquestração da exclusão. Aqui, a marginalização é um acto político, racional e calculado, que garante a estabilidade de um modelo de desenvolvimento profundamente desigual.

Teoricamente, a TME permite reinterpretar o conflito de Cabo Delgado não como um colapso do Estado, mas como um projecto de reconfiguração territorial planeado – em que a violência, a pobreza e o abandono são instrumentos de poder.

  1. Recomendações Políticas: caminhos para reverter a marginalização estratégica

Se a marginalização estratégica é uma construção política, ela pode – e deve – ser desmontada por meio de políticas públicas estruturais. A seguir, propomos um conjunto de recomendações derivadas da teoria, orientadas para a reconstrução social e territorial de Cabo Delgado:

  • Despolitizar o território

É necessário devolver às comunidades o direito de decidir sobre seus espaços. A descentralização deve ser real, com autonomia fiscal e administrativa local, permitindo que os distritos administrem directamente parte das receitas provenientes dos recursos naturais (2,75% local e 10% provincial).

  • Romper com o modelo extractivo

As concessões devem ser revistas à luz do princípio de justiça territorial, garantindo que parte significativa dos lucros seja reinvestida em educação, saúde e infraestrutura comunitária. O actual modelo de desenvolvimento, baseado na exportação de recursos brutos, deve ceder espaço a cadeias de valor locais.

  • Desmilitarizar a reconstrução

A presença militar deve ser substituída por programas de segurança comunitária e reconciliação local. A militarização prolongada gera medo e impede o retorno digno das populações deslocadas. De acordo com dados do OIM existem mais de 600 mil deslocados que ainda não retornaram para as suas zonas de origem.

  • Reconhecer a juventude como sujeito político

Os jovens constituem o grupo mais afectado pela marginalização. Políticas de emprego e formação devem ser estruturantes, e não temporárias. É preciso investir em educação técnica e agricultura sustentável, rompendo o ciclo de dependência de programas temporários de auto-emprego.

  • Produzir conhecimento a partir do território

A academia e os centros de pesquisa moçambicanos devem desenvolver agendas próprias de investigação sobre Cabo Delgado, baseadas em epistemologias locais. O conhecimento deve emergir da base – dos deslocados, dos jovens, dos pescadores e das mulheres – e não apenas das consultorias internacionais.

  1. O Futuro da Teoria e do Território

A Teoria da Marginalização Estratégica nasce da necessidade de compreender Cabo Delgado para além das categorias tradicionais do conflito e do subdesenvolvimento. Propõe que a exclusão, a pobreza e a violência não são falhas, mas partes de um projecto político de reconfiguração territorial e acumulação selectiva.

Reconhecer essa realidade é o primeiro passo para a transformação. A teoria não pretende ser definitiva, mas oferecer uma lente crítica para reorientar o debate nacional e internacional sobre o que significa “desenvolver” um território.

Enquanto persistir a lógica da marginalização estratégica, o desenvolvimento continuará a ser privilégio de poucos. Mas ao nomear o fenómeno e descrevê-lo com clareza, abre-se espaço para resistir-lhe e substituí-lo por uma política de inclusão territorial, que reconheça o direito das populações de Cabo Delgado a existir – não nas margens, mas no centro das decisões que moldam o seu destino.

A reconstrução de Cabo Delgado não será apenas material, mas epistemológica e política. Exige repensar o Estado, redistribuir o poder e devolver às comunidades o controlo sobre seus territórios e suas narrativas.

Se a marginalização foi estratégica, a emancipação também precisa ser.

 

Referências

Beula, E. (2022). Governo aproveita-se do conflito e da ausência das comunidades em Palma e atribui 12 mil hectares de terras ao CPD de Cabo Delgado. Maputo. Centro para a Democracia e Direitos Humanos (CDD).

Fassin, D. (1996) “Exclusion, underclass, marginalidad: figures contemporaines de la pauverté urbaine en France, aux Etats-Unis et Amérique Latine”, in Revue Française de Sociologie. Vol. 37; 37-75.

Hanlon, J. & Smart, T. (2008). Do Bicycles Equal Development in Mozambique? NED – New edition.

Harvey, D. (2004). The New Imperialism: Accumulation By Dispossession. SOCIALIST REGISTER. pp. 63-87. Disponível em: file:///C:/Users/user/Downloads/titusland,+SR_2004_harvey-1.pdf.

INE. (2023a). Inquérito Sobre o Orçamento Familiar, 2022. Maputo. Instituto Nacional de Estatística.

INE. (2023b). A Situação Socioeconómica da Juventude em Moçambique. Maputo. Instituto Nacional de Estatística.

INE. (2023c). Folheto Provincial Cabo Delgado. Instituto Nacional de Estatística.

Maquenzi, J. (05.09.2025). ADIN, TotalEnergies e a Exclusão da Comunidade de Palma. Disponível em: https://moz24h.co.mz/adin-totalenergies-e-a-exclusao-da-comunidade-de-palma/.

Mbembe, A. (2016). Necropolítica. Revista do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. pp. 123-151. Disponível em: https://www.procomum.org/wp-content/uploads/2019/04/necropolitica.pdf.

O’Laughlin, B. (2000). Class and the Customary: The Ambiguous Legacy of the “Indigenato” in Mozambique. Vol. 99, No. 394, pp. 5-42. African Affairs.

Pitcher, M., Anne. (2003). “Sobreviver à transição: o legado das antigas empresas coloniais em Moçambique”. Análise Social. Vol. xxxviii (168), pp. 793-820.

Valoi, E. (14.08.2025). População de Palma quer a TotalEnergies fora de Afungi. Disponível em: https://moz24h.co.mz/populacao-de-palma-quer-a-totalenergies-fora-de-afungi/.

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