Comunicado-18 Novembro 2025. Berlim, Paris, Maputo – Hoje, o European Center for Constitutional and Human Rights (ECCHR) apresentou uma queixa crime em França contra a TotalEnergies1 por cumplicidade em crimes de guerra, tortura e desaparecimentos forçados. A gigante de petróleo e gás é acusada de ter financiado directamente e apoiado materialmente a Força- Tarefa Conjunta, composta pelas forças armadas moçambicanas, que entre julho e setembro de 2021, alegadamente deteve, torturou e matou dezenas de civis no local de gás da TotalEnergies. A queixa foi apresentada ao Procurador Nacional Francês Anti- Terrorismo (PNAT), que também tem mandato para investigar crimes internacionais.
Este processo surge no momento em que a TotalEnergies acaba de anunciar o levantamento da força maior declarada em abril de 2021 a respeito do seu projecto de gás ‘natural’ liquefeito, Mozambique LNG, apesar de um conflito persistente, ataques mortais cada vez mais intensos e uma grave crise humanitária. No entanto, o reinício definitivo do projecto ainda depende da aprovação, por parte do governo moçambicano, do orçamento revisto da TotalEnergies e da cobertura dos custos adicionais do projecto na ordem dos 4,5 mil milhões de dólares.
A denúncia centra-se no chamado “massacre dos contentores” dentro do perímetro da empresa. Estas alegações foram noticiadas pela primeira vez pelo jornal Politico em setembro de 2024, seguido pelo SourceMaterial e pelo Le Monde.
Na sequência de um ataque insurgente à cidade de Palma pelo grupo armado Al-Shabab em março e abril de 20212, o exército moçambicano – incluindo membros da Força-Tarefa Conjunta apoiada pela TotalEnergies – terá detido arbitrariamente dezenas de civis em contentores metálicos situados à entrada das instalações entre julho e setembro de 2021. Os civis estavam a fugir das suas aldeias de origem devido a ataques do Al-Shabab quando foram interceptados pelo exército. De acordo com as alegações relatadas, os detidos foram torturados, sujeitos a desaparecimentos forçados e alguns deles executados. Em setembro de 2021, os últimos 26 detidos foram libertados.
1 E contra “X”: pessoas desconhecidas que não são identificadas na denúncia, mas que podem ser identificadas durante a investigação criminal, como executivos da empresa.
2 Al-Shabab é um grupo armado não estatal, activo desde 2017 na região norte de Moçambique, Cabo Delgado. Está oficialmente afiliado ao Estado Islâmico desde maio de 2022 e é também designado como “Estado Islâmico de Moçambique (ISM)”.
A Força-Tarefa Conjunta foi criada através de um memorando de 2020 entre a subsidiária da TotalEnergies em Moçambique e o governo moçambicano como uma unidade de segurança dedicada a proteger as operações do projecto Moçambique LNG.
A TotalEnergies já sabia das violações dos direitos humanos cometidas pelas forças armadas antes do massacre
“A TotalEnergies já sabia que as forças armadas moçambicanas tinham sido acusadas de violações sistemáticas dos direitos humanos, no entanto continuou a apoiá-las com o único objectivo de proteger as suas próprias instalações”, afirma Clara Gonzales, do ECCHR. “O envolvimento da TotalEnergies com as forças armadas locais e a gravidade das alegações devem levar à abertura de uma investigação pelas autoridades judiciais francesas. As empresas e os seus executivos não são actores neutros quando operam em zonas de conflito: se permitirem ou alimentarem crimes, podem ser cúmplices e devem ser responsabilizados.”
Documentos internos da TotalEnergies, incluindo os da empresa de segurança contratada, detalham actos de violência contra civis cometidos pelas forças armadas moçambicanas a partir de maio de 2020, revelando que a empresa tinha conhecimento de graves violações dos direitos humanos cometidas pela Força-Tarefa Conjunta nas proximidades das suas instalações antes do massacre dos contentores.
Esses documentos foram obtidos por meio de pedidos de liberdade de informação dirigidos aos financiadores públicos do projecto3. Alguns foram divulgados pelo Le Monde e pela SourceMaterial, mas a denúncia analisa novos documentos enviados pelo governo holandês, nos quais a TotalEnergies descreve o seu sistema de segurança, bem como os riscos aos direitos humanos associados ao emprego da Força-Tarefa Conjunta.
Apesar de ter esse conhecimento, a TotalEnergies continuou a apoiar directamente a Força-Tarefa Conjunta, fornecendo alojamento, alimentação, equipamentos e bónus aos soldados – embora estipulando que os bónus seriam retirados se os soldados cometessem violações dos direitos humanos.
Investigação jornalística desencadeia investigações oficiais
O artigo do Politico levou as autoridades moçambicanas a abrirem investigações, assim como dois financiadores públicos do projecto, a agência UK Export Finance e o governo holandês – através da Atradius. No entanto, ainda não foi aberta nenhuma investigação judicial europeia.
Lorette Philippot, da Amigos da Terra França, afirma: “A gravidade das acusações contra a Total, apresentadas nesta queixa crime, deve estabelecer um limite para os financiadores do Moçambique LNG. Mais de 30 bancos públicos e privados decidiram depositar a sua confiança na TotalEnergies em 2020, assinando empréstimos, mas não assinaram cheques em branco. A TotalEnergies continua a demonstrar que não aprendeu nada com o passado: acaba de anunciar o levantamento da força maior no seu projecto de gás apesar da dramática situação humanitária e de segurança. Os governos do Reino Unido e da Holanda, tal como os bancos franceses Société Générale e
3 A Cassa Depositi e Prestiti, banco público de desenvolvimento da Itália, e a ATRADIUS, banco público de desenvolvimento da Holanda.
Crédit Agricole, devem agora recusar-se a renovar o seu apoio financeiro e retirar-se do Moçambique LNG.”
Daniel Ribeiro, da Justiça Ambiental, afirma: “As comunidades locais têm sofrido repetidas violações dos seus direitos humanos, mas até hoje não tiveram justiça. Os autores desses crimes não enfrentaram quaisquer consequências. Este caso é um passo importante em direcção à justiça, onde os interesses de lucro de uma empresa como a TotalEnergies não se podem sobrepôr aos direitos e às vidas das populações locais.”
Segunda queixa contra a TotalEnergies relativa ao seu projecto Moçambique LNG
Este caso segue uma outra queixa crime apresentada em 2023 por sobreviventes e familiares das vítimas do ataque de Palma, em março e abril de 2021, no qual a TotalEnergies é acusada separadamente de não ter garantido a segurança dos seus subcontratados, que foram alvejados e, em alguns casos, mortos. Em março de 2025, o Ministério Público de Nanterre abriu uma investigação preliminar contra a TotalEnergies por homicídio involuntário e omissão do dever de socorro a pessoas em perigo.
As empresas podem ser responsabilizadas criminalmente: em França, o caso Lafarge levou à acusação da empresa e dos seus executivos por cumplicidade em crimes contra a humanidade cometidos pelo ISIS na Síria, e a um julgamento ainda em curso por financiamento ao terrorismo, perante o tribunal de Paris. Na Suécia, também está a decorrer um julgamento contra dois ex- executivos da empresa petrolífera sueca Lundin por cumplicidade em crimes de guerra cometidos pelo regime do Sudão – agora Sudão do Sul.
Além da sua associação a inúmeras acusações de violações dos direitos humanos, o projecto poderá ainda contribuir para a emissão de até 4,5 mil milhões de toneladas de CO2 equivalente ao longo da sua vida útil, tornando-o uma das bombas de carbono que ameaçam os objectivos do Acordo de Paris.
Notas aos editores
● A Justiça Ambiental JA!, Amigos da Terra França e Amigos da Terra Europa, que há anos estão envolvidas numa campanha contra as violações dos direitos humanos associadas ao projecto da TotalEnergies Moçambique LNG, estão a apoiar esta acção judicial.
● Este caso baseia-se no trabalho contínuo do ECCHR em torno da responsabilidade das empresas em situações de conflito. Mais informações sobre o processo do ECCHR contra a Lafarge na Síria por cumplicidade em crimes contra a humanidade podem ser encontradas aqui.
