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TEMOS MEDO DO NOSSO GOVERNO: Como a Protecção Selectiva Mata a Confiança em Cabo Delgado

 

Jerry Maquenzi & Estácio Valoi

 

Durante a recente visita do Governador de Cabo Delgado, um cidadão de Mocímboa da Praia levantou-se e perguntou, com voz firme: “Como é possível que Mocímboa, Palma e Macomia continuem a ser atacadas, enquanto Mueda permanece intocável?” A multidão respondeu com aplausos. Não era um aplauso de apoio ao poder, mas um aplauso de desabafo – um gesto colectivo que transformou a dúvida de um homem em denúncia pública. Aquela pergunta, simples e directa, expôs o que há muito se sussurra nas aldeias e nos centros de reassentamento: a guerra em Cabo Delgado não atinge todos da mesma maneira, nem todos têm o mesmo tipo de protecção.

Poucos dias antes, uma reportagem da rádio Zumbo FM trazia outra declaração, ainda mais contundente: “Já não temos medo do Al-Shabaab, temos medo do nosso governo.” Essas duas vozes, vindas do chão de Mocímboa da Praia, resumem o drama moral e político de Cabo Delgado. Depois de anos de ataques, deslocamentos e promessas de reconstrução, o inimigo mudou de rosto. O medo já não vem apenas das matas, mas das instituições; já não vem do fuzil, mas do silêncio. O Estado que devia proteger tornou-se, para muitos, a fonte mais constante de insegurança.

  1. O Medo Deslocado: Da Insurgência à Autoridade

Quando o conflito começou em 2017, o terror tinha um nome: Al-Shabaab. As aldeias queimadas, os ataques-surpresa, as decapitações – tudo parecia obra de um inimigo externo, sem rosto e sem fronteira. Mas, à medida que o tempo passou, o medo foi mudando de endereço. Os insurgentes recuaram, as forças estrangeiras entraram, e o discurso oficial começou a falar em “retorno à normalidade”. No entanto, para os que vivem nos distritos mais afectados, a normalidade é apenas um novo tipo de medo.
Em Mocímboa, Palma ou Macomia, a presença militar é constante, mas a protecção é relativa. Os soldados patrulham, mas também vigiam. Os civis sentem-se observados, interrogados, controlados. Quem fala demais é suspeito; quem filma é subversivo; quem questiona é inimigo.

Assim, o medo que antes vinha da floresta passou a vir do fardamento. O inimigo, antes invisível, agora está presente – em nome do Estado. É o medo institucional, o medo legalizado, o medo quotidiano de quem vive num espaço onde a autoridade substituiu a segurança.

  1. O Silêncio como Estratégia de Controlo

O silêncio é hoje uma das formas mais eficazes de dominação em Cabo Delgado. Nas zonas ditas “reconquistadas”, tudo o que se diz, filma ou publica passa por filtros. Jornalistas são desencorajados, e quem insiste em relatar a verdade enfrenta represálias. Os casos de Ibraimo Mbaruco, Amade Abubacar, Estácio Valói e Izidine Achá são sinais claros de que o Estado prefere o silêncio à transparência. Mas esse silêncio não é um acidente – é uma estratégia de poder. Ao silenciar, o Estado não apenas esconde erros; ele cria dependência informativa. A população passa a viver entre boatos e ordens, entre o medo de mentir e o medo de dizer a verdade. A guerra, nesse contexto, continua, mesmo quando os tiros cessam, porque o medo ainda governa.

Em Cabo Delgado, o silêncio não é ausência de som – é presença de controlo. E o controlo é o novo campo de batalha.

  1. Mueda e a Geografia do Privilégio

O contraste entre Mueda e os distritos vizinhos é talvez o facto mais intrigante e revelador da política de Cabo Delgado. Enquanto Mocímboa da Praia, Palma e Macomia acumulam deslocados, ruínas e luto, Mueda parece blindada. Nem ataques, nem deslocamentos, nem medo visível. É como se a guerra respeitasse fronteiras políticas. Por que Mueda nunca é atacada? A resposta talvez esteja na história. Mueda é o berço simbólico da FRELIMO, o território dos “heróis” da libertação, a terra dos veteranos, dos generais e das famílias que, desde a independência, formam o núcleo duro do poder político-militar moçambicano. Mueda é mais do que uma vila: é um santuário da elite.
Atacá-la seria tocar no coração da legitimidade histórica do partido no poder.
E, por isso mesmo, é mantida como zona de imunidade, rodeada por distritos sacrificados.

Essa diferença territorial cria um mapa de desigualdade: de um lado, o privilégio da protecção; do outro, o abandono justificado pela “instabilidade”. E o povo percebe isso. Os aplausos durante a visita do Governador não foram por patriotismo – foram o som da desconfiança colectiva. Quando um povo aplaude uma pergunta e não uma resposta, é sinal de que a verdade já foi compreendida, mesmo sem ser dita.

  1. Marginalização Estratégica: Quando o Abandono é Política

A “teoria da marginalização estratégica” por nós proposto, ajuda a explicar o que se passa. Segundo essa leitura, o Estado não exclui por erro, mas por escolha. A marginalização, nesse sentido, é deliberada e funcional: ela permite controlar populações, territórios e narrativas através do abandono selectivo. Deixar Palma, Mocímboa da Praia ou Macomia vulneráveis não é mera incompetência; é um modo de governar pela carência.  Populações que dependem de ajuda tornam-se mais dóceis; distritos devastados justificam mais fundos internacionais; e o sofrimento, transformado em discurso humanitário, serve para legitimar o controlo político. A vulnerabilidade torna-se uma forma de disciplina.

Enquanto isso, os locais onde o poder se ancora – como Mueda – são cuidadosamente poupados. A guerra, então, não é igual em todo lado porque não é feita para ser igual. Ela é uma ferramenta de gestão: define quem é protegido, quem é útil e quem é descartável. E é por isso que o medo, em Cabo Delgado, é uma tecnologia de governo.

  1. A Reconstrução que não Reconstrói

Depois da destruição, vieram as promessas de reconstrução. Mas a reconstrução, em muitos casos, reconstruiu apenas as estruturas de poder. Nos distritos devastados, as populações deslocadas continuam em acampamentos sem acesso a terras férteis, sem documentos, sem segurança jurídica. Enquanto isso, as empresas próximas do poder ganham contratos para erguer escolas, estradas ou habitações temporárias – projectos que raramente beneficiam quem mais sofreu.

A reconstrução tornou-se um novo negócio. Os fundos externos chegam, mas o seu destino é decidido longe das aldeias. A população local é vista como beneficiária passiva, nunca como agente. E quem questiona a distribuição dos recursos é acusado de “instigar o descontentamento”. Assim, o medo volta a manifestar-se – não como terror armado, mas como medo administrativo e económico. As pessoas receiam perder o pouco que têm: o subsídio, o emprego temporário, o saco de arroz doado. Esse medo é o mais eficaz de todos, porque se disfarça de ajuda.

Conclusão

O conflito em Cabo Delgado está longe de terminar, mesmo que as armas se calem.
Porque a guerra mais profunda é a que se trava no coração das pessoas: a luta entre a esperança e o medo. Quando o povo diz que já não teme o Al-Shabaab, mas teme o seu governo, algo se quebrou no pacto social. O medo do Estado é o sintoma de uma legitimidade em crise. Um governo que inspira mais receio do que confiança deixou de ser protector e passou a ser predador. A segurança, nesse contexto, deixa de ser um direito e torna-se um privilégio distribuído politicamente. E os aplausos daquele dia – vindos de homens e mulheres cansados, mas lúcidos – foram, na verdade, o primeiro acto público de resistência simbólica.

Cabo Delgado não precisa apenas de reconstrução física, mas de reconstrução moral e política. A paz não virá das armas, nem dos relatórios, mas do reconhecimento de que o povo tem direito de viver sem medo – seja do terrorista, seja do soldado, seja do próprio Estado. O dia em que o governo deixar de ser temido será o dia em que Moçambique começará, de facto, a reconstruir-se.

 

Referência

Zumbo FM. (08.10.2025). Cabo Delgado: “Já não temos medo com Al-Shabaab, temos medo do nosso Governo” – denunciam residentes de Mocímboa da Praia. Disponível em: https://www.zumbofm.com/index.php/noticias/item/7144-cabo-delgado-ja-nao-temos-medo-com-al-shabaab-temos-medo-do-nosso-governo-denunciam-residentes-de-mocimboa-da-praia.  

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