A Urgência de um Ecologismo Centrado na Pessoa em Moçambique
Por Tiago J.B. Paqueliua
“Não há ecologia sem uma antropologia adequada.”
— Laudato Si’, n.º 118
Resumo
O conflito crescente entre comunidades humanas e fauna bravia em Moçambique, como evidenciado pela destruição recente de mais de 1500 hectares de culturas agrícolas por elefantes e hipopótamos em Machanga, província de Sofala, expõe uma realidade inquietante: a subalternização da vida humana no seio de uma conservação ambiental desumanizada. Este artigo defende uma reorientação ética e jurídica da política ambiental, fundamentada no direito canónico à vida, nos direitos humanos e nas práticas sustentáveis que coloquem o Homem no centro da criação.
Contexto e Problema
A 15 de Julho de 2025, os Serviços Distritais de Actividades Económicas de Machanga tornaram público que elefantes e hipopótamos destruíram mais de 1500 hectares de culturas alimentares, comprometendo gravemente a segurança alimentar de centenas de famílias camponesas. As autoridades locais admitem a gravidade da situação, mas hesitam em adoptar medidas que contrariem os protocolos internacionais de protecção da fauna bravia.
Este episódio não é isolado. Moçambique, como vários países do Sul Global, vive sob o peso de um modelo de conservação ambiental imposto por agências e fundos do Norte Global, onde o habitat dos animais é frequentemente mais protegido do que o espaço vital das pessoas. O resultado tem sido o reassentamento forçado, a invisibilização da pobreza rural, a criminalização da sobrevivência camponesa e a negação da centralidade do ser humano na ordem da criação.
Uma Leitura Teológica e Jurídico-Humanista da Natureza
A doutrina da mordomia da criação, presente no direito canónico e na tradição judaico-cristã, estabelece que o Homem é guardião da Terra — não seu dono, tampouco seu inimigo. Isso implica um compromisso ético com a natureza, sem negar que a vida humana é a referência maior de valor ontológico. Como sublinhou o Papa Francisco na Laudato Si’, a ecologia integral não é ecocêntrica nem antropocêntrica, mas relacional e humanizadora.
Portanto, colocar elefantes e hipopótamos acima das necessidades básicas de sobrevivência das populações locais constitui uma inversão moral, jurídica e civilizacional que importa corrigir com urgência.
Da Conservação Elitista à Justiça Ambiental Inclusiva
O modelo dominante de preservação ambiental em Moçambique assenta numa lógica de “santuarização” da natureza, herdada da colonização e reforçada por interesses turísticos e extrativistas. Parques nacionais, reservas de caça e zonas tampão são frequentemente criados sem consulta às populações locais, empurrando-as para periferias sem recursos, serviços ou dignidade.
No Parque Nacional das Quirimbas, por exemplo, há relatos de expulsões silenciosas de comunidades inteiras, sob o argumento de conservação. Em muitos casos, estas populações são aconselhadas a “evitar procriar” ou a “viver de forma sustentável” num ambiente onde nada lhes é fornecido para tal — o que representa uma forma velada de neomalthusianismo ambiental.
Aqui emerge o conceito de racismo ecológico, expressão usada para descrever políticas ambientais que penalizam de forma desproporcional as comunidades do Sul Global, em nome de uma natureza que lhes é retirada. Preservam-se os animais, expulsam-se os pobres.
Experiências Relevantes e Soluções Replicáveis
Felizmente, há alternativas em curso noutros países africanos e asiáticos que conciliam ecologia e dignidade humana:
1. Colmeias como barreiras vivas (Quénia, Tanzânia): A instalação de colmeias ao longo dos campos agrícolas revelou-se eficaz na dissuasão de elefantes, que temem abelhas. Este método reduz conflitos, produz mel e envolve a comunidade local.
2. Compensações rápidas por perdas agrícolas (Namíbia): A legislação nacional prevê indemnizações céleres para camponeses afectados por animais selvagens, evitando ressentimentos e fortalecendo a coexistência pacífica.
3. Gestão participativa da fauna (Botswana): Programas de co-gestão entre Estado e comunidades promovem a protecção da vida selvagem e o usufruto económico via turismo comunitário.
4. Monitoria com drones (Índia): A tecnologia é usada para mapear as movimentações dos grandes animais, permitindo alertas antecipados e estratégias preventivas.
Estas abordagens partilham um princípio estruturante: a vida humana não é descartável e deve ser protegida com o mesmo vigor com que se protege a biodiversidade.
Conclusão: O Homem Não Deve Ser o Exilado da Criação
Moçambique precisa urgentemente de uma reforma ecológica que tenha rosto humano. Isso implica:
Priorizar a vida e a segurança das pessoas nas políticas ambientais;
Garantir o acesso das populações às suas terras, alimentos e água;
Combater o racismo ecológico e o autoritarismo conservacionista;
Reconhecer a dignidade da agricultura camponesa como base da soberania alimentar.
Os conflitos entre humanos e animais não são naturais — são fabricados por sistemas de gestão que esquecem que não há ecossistema viável onde o ser humano é tratado como intruso.
Que a Procuradoria-Geral da República, a Comissão Nacional de Direitos Humanos, o IPAJ, a Ordem dos Advogados e demais actores interessados intervenham sempre que ocorram situações semelhantes à de Machanga.
Que este episódio sirva de alerta para redefinir o paradigma: da exclusão à convivência, da imposição à participação, da tutela externa à soberania ecológica nacional.
Referências complementares
1. Papa Francisco. Laudato Si’ — Sobre o cuidado da casa comum, 2015.
2. African Wildlife Foundation. Human-Wildlife Conflict in Africa, 2022.
3. Sachedina, H. & Nelson, F. Protected areas and community incentives, Conservation Biology, 2010.
4. Silva, J. M. Ambientalismo sem povo: crítica à ecologia sem ética social, Revista da UEM, 2019.
5. Mbembe, A. Política da Inimizade. Lisboa: Antígona, 2016.
6. Shiva, V. Quem Alimenta o Mundo?. São Paulo: Elefante, 2019.