Quando o carisma conjugal suplanta a legalidade republicana
Por Tiago J.B. Paqueliua
A recente presença da Primeira-Dama da República, Gueta Chapo, a dirigir a cerimónia oficial do Dia Internacional da Alfabetização em Matutuíne (conforme noticiado pela Rádio Moçambique), expõe mais uma vez um velho problema do Estado moçambicano: a apropriação indevida de funções públicas por figuras que não possuem mandato popular, nem legitimidade institucional.
O lema “Promovendo a Alfabetização na Era Digital” deveria convocar uma intervenção coordenada do governo, com políticas públicas estruturadas e lideradas por órgãos competentes do sector da Educação. Contudo, a cerimónia foi comandada por uma figura não eleita, sem enquadramento legal e sem responsabilidade administrativa, traduzindo a crescente confusão entre representação simbólica e exercício efectivo de funções de Estado.
Uma tradição de informalidade institucionalizada
Este fenómeno não é novo. Durante a presidência de Armando Emílio Guebuza, a então Primeira-Dama Maria da Luz Guebuza foi amplamente criticada pela forma como subjugava governos provinciais à sua agenda pessoal. Autoridades locais, em diversas ocasiões, foram forçadas a suspender actividades prioritárias — como reuniões de planeamento económico e acções comunitárias urgentes — para acompanhar iniciativas “sociais” da esposa do Presidente. Essas iniciativas, além de redundantes, eram da alçada do Ministério da Mulher e da Acção Social.
Assim se consolidou um desvio institucional: Primeiras-Damas transformadas em “gestoras paralelas” de políticas públicas, sem orçamento aprovado pela Assembleia da República, sem escrutínio e sem responsabilização. Na prática, trata-se de um parasitismo político que mina a transparência e degrada a credibilidade do Estado.
Enquadramento jurídico
A Constituição da República de Moçambique é clara.
O artigo 2.º consagra que “a República de Moçambique é um Estado de direito democrático, baseado na legalidade, no pluralismo e no respeito pela Constituição e pelas leis”.
O artigo 3.º estabelece a soberania do povo, que a exerce apenas “através dos órgãos eleitos”.
O artigo 6.º reforça o princípio da legalidade administrativa, obrigando todas as entidades públicas a actuarem dentro dos limites fixados pela lei.
Ora, as Primeiras-Damas não fazem parte da estrutura orgânica do Estado. Não são eleitas, não prestam juramento constitucional, não respondem perante o Parlamento nem têm competência delegada por lei. Qualquer acto oficial que lhes seja atribuído representa uma usurpação funcional e uma violação directa da Constituição e do princípio da legalidade administrativa.
Consequências da usurpação
Permitir que figuras sem mandato assumam papéis executivos não é apenas uma afronta protocolar. É um atentado à separação de funções entre representantes eleitos, servidores públicos e figuras protocolares. Viola a Constituição, enfraquece o Estado de Direito e abre espaço para a impunidade, porque uma Primeira-Dama não responde nem perante o Parlamento, nem perante os tribunais administrativos.
Trata-se, portanto, de um exercício paralelo de governação, alimentado pelo silêncio cúmplice das instituições, que se curvam diante do carisma conjugal, em vez de zelar pela ordem republicana.
Conclusão: A Hora da Responsabilidade
Se Moçambique deseja afirmar-se como uma República moderna, assente na legalidade, no mérito e na responsabilização, urge pôr fim a esta prática de usurpação protocolar transformada em governação paralela.
As Primeiras-Damas podem ter um papel de advocacia social e mobilização cívica, mas nunca de comando ou direcção de políticas públicas. O Estado não pode continuar a ser confundido com uma extensão doméstica da Presidência.
Cabe ao Presidente Daniel Francisco Chapo, jurista e conhecedor do Estado de Direito, romper com este vício histórico e instaurar um novo paradigma: um país em que a governação seja exercida apenas por quem tem mandato legal para tal, e em que o simbolismo matrimonial jamais suplante a autoridade da lei.
É tempo de a sociedade civil erguer a voz e exigir que as instituições funcionem de acordo com a Constituição, e não segundo conveniências familiares. É tempo de a oposição política denunciar com firmeza esta deformação institucional, em vez de a normalizar. É tempo de os tribunais administrativos e a Assembleia da República fiscalizarem com coragem este abuso velado.
Porque, se o Estado for entregue à lógica da informalidade conjugal, então estaremos a consagrar um segundo colonialismo doméstico — em que o povo, mais uma vez, perde o direito de ser governado apenas por aqueles a quem confiou o voto.