Politica

PGR Acusa Vitano Singano, Manecas Daniel e Outros Quatro de Conspiração Contra a Segurança do Estado

 

Mais de 300 mortos depois, o Estado encontra os “culpados” nas fileiras opositoras, entre os quais Vitano Singano, dado como raptado há semanas na cidade da Beira, por um grupo de desconhecidos

Por Tiago J.B. Paqueliua

Nos termos da notícia veiculada pela Cartamoz de 21 de julho corrente, o Ministério Público moçambicano formalizou, junto do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, o primeiro despacho de acusação relativo às manifestações populares pós-eleitorais ocorridas entre Outubro de 2024 e Março de 2025. As manifestações resultaram em mais de 300 mortes confirmadas em todo o território nacional — e o Estado, através da Procuradoria-Geral da República (PGR), diz ter identificado os supostos autores morais e materiais da alegada tentativa de subversão da ordem constitucional.

No centro das acusações estão figuras da oposição e antigos membros das Forças Armadas. Os arguidos nomeados no processo n.º 277/GCCCOT/2024 são:

1.⁠ ⁠Vitano Singano, Presidente do partido Revolução Democrática (RD);

2.⁠ ⁠Manecas Daniel, Coordenador da Coligação Aliança Democrática (CAD);

3.⁠ ⁠Reinaldo Sindique, membro da CAD;

4.⁠ ⁠Justino Monjane, também da CAD;

5.⁠ ⁠Jeremias Sitoe, membro das Forças armadas de Defesa de Moçambique; e

6.⁠ ⁠Piedade Machado, também militar do Exército.

A acusação, datada de 27 de Junho e notificada aos arguidos durante o corrente mês, inclui os crimes de conjuração ou conspiração contra a segurança do Estado, associação criminosa e alteração violenta do Estado de Direito. Alegações centrais do Ministério Público. Segundo a narrativa da PGR, os arguidos terão organizado reuniões clandestinas com militares no bairro do Alto-Maé, em Maputo, desde Outubro de 2024, com supostos planos de sublevação armada.

A acusação baseia-se essencialmente em escutas telefónicas, cuja autenticidade e contextualização ainda não foram testadas judicialmente, e em confissões parciais como a da militar Piedade Machado.

A PGR alega que explosivos seriam fornecidos por garimpeiros do distrito de Monapo (Nampula) para destruir estradas e pontes estratégicas, dificultando movimentos das forças de defesa. Em diversas conversas citadas, os arguidos discutem o recrutamento de militares e a suposta disposição de grupos armados em zonas sensíveis como Vunduzi (Gorongosa) e a cidade da Matola.

Aponta-se ainda a intenção de invasão de quartéis, comandos policiais e instituições do Estado, e um plano alegado de assassinato de comandantes da PRM.

Jeremias Sitoe, militar e activista digital, teria incentivado a mobilização juvenil via redes sociais e discutido vulnerabilidades da segurança presidencial em grupos de WhatsApp.

Posição da Acusação:

A Procuradoria afirma ter reunido “indícios suficientes” para levar os arguidos a julgamento, com base em:

Escutas e transcrições de chamadas;

Testemunhos como o de Bento Raice;

Confissões parciais (caso de Piedade Machado);

Provas periciais (áudios e mensagens eletrónicas).

Segundo o Ministério Público, o grupo visava provocar um caos social controlado, tornando o país ingovernável e assim abrir caminho à ascensão da oposição.

Comentário

Não precisa literacia em direito penal para afirmar que esta acusação, além de juridicamente controversa, levanta complexas interrogações sobre o equilíbrio entre segurança nacional e direitos civis, o que demonstra:

1.⁠ ⁠Fragilidade da Prova Indiciária:

A centralidade da prova telefónica, não submetida ainda ao crivo contraditório nem a perícia técnica independente, torna o processo vulnerável à imputação de instrumentalização judicial com motivações políticas.

2.⁠ ⁠Desvio da Tipicidade Penal Clássica:

Os tipos penais usados (conjuração, conspiração, associação criminosa) requerem demonstração clara de actus reus e mens rea — o que, até aqui, parece fundado apenas em intenções expressas e não em actos consumados.

3.⁠ ⁠Estado de Direito em Cheque:

O risco de criminalizar protestos e organização política opositora sob o pretexto de segurança nacional mina os fundamentos do Estado Democrático de Direito e consolida um regime securitário e repressivo.

4.⁠ ⁠Ausência de Responsabilização Estatal pelos 300 mortos:

O despacho da PGR ignora as forças estatais envolvidas em mortes e desaparecimentos forçados, numa clara negligência do princípio de imparcialidade processual e do dever de responsabilização do Estado por uso excessivo da força.

II. Outras Contribuições Interdisciplinares a ter em conta

1.⁠ ⁠Ciência Política: A acusação pode ser vista como parte de uma estratégia de intimidação da oposição, típica de regimes híbridos que formalmente mantêm instituições democráticas, mas as subvertem na prática.

2.⁠ ⁠Sociologia: Há sinais de criminalização da mobilização popular, transformando em bodes expiatórios aqueles que apenas canalizaram a dor social de milhões de moçambicanos fartos de fraudes eleitorais, pobreza e autoritarismo.

3.⁠ ⁠História Comparada: Este tipo de acusação remete ao padrão dos julgamentos políticos nos regimes de partido único, em que se usa a máquina judicial para sufocar vozes alternativas e garantir hegemonia total.

4.⁠ ⁠Direitos Humanos: Ignorar o massacre de mais de 300 manifestantes, enquanto se amplifica acusações frágeis contra líderes civis, viola convenções internacionais de justiça e dignidade humana, das quais Moçambique é signatário.

A julgar pela acusação ora apresentada, o Estado está mais empenhado em disciplinar opositores do que em esclarecer quem matou centenas de cidadãos indefesos nas ruas. Enquanto os corpos dos mortos são relegados ao silêncio das valas comuns, os vivos que ousam protestar são levados aos tribunais. Se isso não é uma inversão de justiça, então o que será?

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