Economia Sociedade

O Paradoxo da Responsabilidade Social Corporativa em Moçambique: Entre a Crítica Governamental e a Violação Constitucional

Foto:Escola Primária de Nhapala II, Chalaua, Moma.

 

Por Tiago J.B. Paqueliua

Resumo

Este artigo analisa o paradoxo da responsabilidade social corporativa (RSC) em Moçambique, tomando como estudo de caso a construção de quatro salas de aula pela empresa INDO ÁFRICA em Namarrepo 2, distrito de Lalaua, província de Nampula. O governo distrital criticou a qualidade da obra, mas ignora as próprias falhas na aplicação da Lei de Minas (Lei n.º 20/2014) e do Decreto n.º 31/2015, bem como violações constitucionais dos artigos 88.º (direito à educação) e 117.º (participação comunitária). A pesquisa adota uma abordagem qualitativa, baseada em revisão documental, análise de imprensa e comparação com outros contextos africanos (Gana e Tanzânia). Os resultados mostram que a RSC em Moçambique sofre de um déficit de legitimidade estatal e que a sua eficácia depende de transparência, participação comunitária real e responsabilização governamental.

Palavras-chave:

Responsabilidade Social Corporativa; Moçambique; Lei de Minas; Constituição; Governação; Educação; Transparência.

Introdução

A responsabilidade social corporativa tornou-se, em Moçambique, um campo de tensão entre empresas mineiras, comunidades locais e o Estado. Embora exista legislação clara (Lei n.º 20/2014 e Decreto n.º 31/2015), a sua aplicação revela profundas contradições. O caso da INDO ÁFRICA ilustra este paradoxo: enquanto o Estado critica a empresa pela qualidade das infraestruturas, ele próprio falha em garantir escolas condignas e em gerir de forma transparente os fundos destinados à RSC.

A questão central que este paper explora é: pode o Estado moçambicano reclamar qualidade e transparência das empresas se não pratica esses princípios?

Metodologia

A pesquisa baseia-se em:

1.⁠ ⁠Revisão documental da legislação moçambicana (CRM, Lei de Minas e Decreto 31/2015).

2.⁠ ⁠Análise qualitativa de imprensa, incluindo notícias do Moztoday (2025) e casos reportados em Moma.

3.⁠ ⁠Estudo comparado com práticas de RSC em Gana e Tanzânia, países com estruturas regulatórias semelhantes.

4.⁠ ⁠Análise crítica interdisciplinar, cruzando direito, ciência política e estudos de desenvolvimento.

Revisão Bibliográfica

Autores como Carroll (1999) e Blowfield (2007) defendem que a RSC deve ser entendida como um compromisso ético e social para além da lei. No contexto africano, Hilson (2012) mostra que as empresas mineiras são frequentemente chamadas a suprir lacunas deixadas por Estados frágeis.

Em Moçambique, Nhancale & Salomão (2015) sublinham que a ausência de transparência na gestão da RSC gera conflitos entre comunidades, empresas e governo, levando à desconfiança generalizada.

Estudo de Caso: Moçambique

O episódio da INDO ÁFRICA em Lalaua revelou três paradoxos fundamentais:

1.⁠ ⁠Paradoxo governamental: o Estado critica obras privadas, mas entrega escolas públicas como a de Nhapala II em condições indignas.

2.⁠ ⁠Paradoxo legal: existe enquadramento jurídico adequado (Lei 20/2014 e Decreto 31/2015), mas sua aplicação é seletiva e opaca.

3.⁠ ⁠Paradoxo constitucional: o Estado viola os artigos 88.º e 117.º da CRM, negando o direito à educação de qualidade e à participação comunitária.

 

O caso da Kenmare em Moma reforça o padrão: fundos destinados a projetos comunitários desaparecem, revelando captura política dos recursos da RSC.

Análise Comparada: Gana e Tanzânia

Gana: A Lei dos Minerais e Mineração (2006) criou o Minerals Development Fund, que canaliza parte das receitas mineiras para comunidades afetadas. Apesar de problemas de corrupção, existe um sistema de fiscalização mais transparente e auditorias independentes.

Tanzânia: A Lei de Recursos Naturais (2017) exige que as empresas invistam diretamente em projetos comunitários, definidos em conjunto com autoridades locais e comitês comunitários. A participação é legalmente obrigatória, limitando a captura estatal.

Comparado a esses países, Moçambique revela maior centralização e opacidade, o que explica a frágil legitimidade estatal.

Discussão

A análise mostra que o paradoxo da RSC em Moçambique não decorre da inexistência de legislação, mas da má governação e falta de accountability. O Estado atua como predador institucional, apropriando-se de fundos comunitários e instrumentalizando a RSC para fins políticos.

Enquanto Gana e Tanzânia avançaram em mecanismos de fiscalização e participação, Moçambique permanece preso a um modelo estatocêntrico, onde a comunidade é vista como beneficiária passiva e não como protagonista.

Conclusão

O caso da INDO ÁFRICA demonstra que a eficácia da RSC em Moçambique depende de três pilares:

1.⁠ ⁠Concretização constitucional – respeito efetivo aos artigos 88.º (direito à educação) e 117.º (participação comunitária).

2.⁠ ⁠Reforma institucional – fortalecimento de auditorias independentes e descentralização da gestão da RSC.

3.⁠ ⁠Transparência e co-gestão – criação de comitês locais que fiscalizem a aplicação dos fundos em tempo real.

 

Sem estas medidas, o Estado continuará a ser um fiscal ilegítimo, criticando empresas enquanto viola sistematicamente a lei e a Constituição.

Glossário

RSC (Responsabilidade Social Corporativa): Conjunto de práticas voluntárias ou obrigatórias de empresas para contribuir ao desenvolvimento social e ambiental.

Predador institucional: Estado ou entidade que se apropria de recursos comunitários em benefício próprio.

Accountability: Responsabilidade e prestação de contas na gestão de recursos públicos e privados.

Epílogo

A responsabilidade social corporativa em Moçambique será sempre limitada enquanto não se enfrentar a raiz do problema: a captura política do Estado. Não basta empresas investirem em escolas ou hospitais; é preciso garantir que a Constituição da República não seja uma promessa vazia. A verdadeira RSC nasce quando empresas, comunidades e Estado partilham poder de decisão sob o escrutínio da sociedade civil.

Referências

1.⁠ ⁠Assembleia da República. Constituição da República de Moçambique (CRM, 2004, revista em 2018).

2.⁠ ⁠Assembleia da República. Lei n.º 20/2014, de 18 de Agosto (Lei de Minas).

3.⁠ ⁠Conselho de Ministros. Decreto n.º 31/2015, de 31 de Dezembro (Regulamento de Responsabilidade Social Empresarial).

5.⁠ ⁠Moztoday, 7 de setembro de 2025. Notícia sobre a construção de quatro salas de aula em Namarrepo 2 pela INDO ÁFRICA.

6.⁠ ⁠Nhancale, B. & Salomão, A. (2015). Gestão da Responsabilidade Social no Setor Mineiro em Moçambique. Maputo: IESE.

7.⁠ ⁠Hilson, G. (2012). Corporate Social Responsibility in the Extractive Industries in Africa. Resources Policy.

8.⁠ ⁠Carroll, A. (1999). Corporate Social Responsibility: Evolution of a Definitional Construct. Business & Society.

9.⁠ ⁠Blowfield, M. (2007). Reasons to be Cheerful? What We Know About CSR’s Impact. Third World Quarterly.

10.⁠ ⁠Government of Ghana. Minerals and Mining Act, 2006 (Act 703).

11.⁠ ⁠Government of Tanzania. Natural Wealth and Resources Acts, 2017.

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