O discurso sobre o estado da Nação, proferido por João Lourenço a 15 de Outubro de 2025 na Assembleia Nacional, foi apresentado como uma celebração dos 50 anos da independência de Angola.
Contudo, para além da retórica histórica e dos números estatísticos, o que se revelou foi uma profunda desconexão entre o Estado proclamado e a Nação vivida. A distância entre o que se diz e o que se faz, entre o que se promete e o que se concretiza é hoje o traço mais evidente da governação angolana.
O país parece existir como território e população, mas não como comunidade política coesa, orientada por um Estado que assuma as suas responsabilidades fundamentais.
O discurso presidencial, longe de ser um exercício de prestação de contas, foi antes uma reafirmação da persistente ausência do Estado nas suas grandes tarefas de construção nacional.
A ausência de uma política efectiva de emprego é talvez o sintoma mais gritante da falência do Estado como promotor do bem-estar colectivo. O desemprego juvenil continua a ser estrutural, com milhares de jovens sem perspectivas de inserção produtiva na economia.
O presidente mencionou a agricultura como base e a indústria como motor do progresso, mas não apresentou qualquer plano concreto para transformar esses sectores em criadores de emprego digno. A retórica da diversificação económica repete-se há anos, mas os resultados são escassos e os obstáculos persistem: falta de crédito, comunicações degradadas, ausência de políticas públicas eficazes.
O Estado, que deveria ser o catalisador da transformação económica, limita-se a anunciar estratégias sem mecanismos de implementação, sem metas verificáveis, sem responsabilização.
A promoção de uma sociedade livre e aberta, outro pilar essencial da construção nacional, também está ausente. O discurso presidencial ignorou por completo a questão das liberdades cívicas, da participação política efectiva, da institucionalização do poder local. As eleições autárquicas continuam adiadas, sem calendário, sem vontade política. A promessa de descentralização, tantas vezes repetida, não passa de um expediente retórico.
O cidadão permanece afastado das decisões que moldam o seu quotidiano, e os mecanismos de prestação de contas são inexistentes. A governação local é feita de cima para baixo, sem escuta, sem transparência. O Estado, em vez de ser um espaço de inclusão e diálogo, é um aparelho de controlo e exclusão.
Na educação, o esforço real é substituído por proclamações genéricas. O presidente reconheceu os desafios na disponibilização de serviços sociais, mas não apresentou medidas concretas para enfrentar a crise educativa. João Lourenço sublinhou avanços na educação, como o aumento de 608 mil para mais de 9,6 milhões de alunos, a redução do analfabetismo de 85% para 24%, a formação de mais de 208 mil professores, o crescimento do ensino superior e técnico-profissional, e investimentos em infra-estruturas, alimentação escolar e capacitação docente. Estes dados reflectem uma expansão significativa do sistema educativo em termos quantitativos. No entanto, nada dizem sobre os desafios estruturais que comprometem efectivamente a qualidade e a equidade do ensino. O número de escolas e de salas de aula não acompanhou o crescimento da população estudantil, gerando turmas sobrelotadas e horários reduzidos. A qualidade pedagógica continua frágil, com escassez de formação contínua e materiais adequados, sobretudo nas zonas rurais. O acesso à escola é desigual, com crianças em províncias como Bié, Kuando Kubango, Moxico e Lunda Norte a enfrentarem grandes distâncias. O ensino técnico está frequentemente desalinhado com o mercado de trabalho, e o ensino superior permanece elitizado (e muitas vezes preguiçoso), dominado por instituições privadas com mensalidades inacessíveis e bolsas insuficientes. Apesar dos números, a realidade vivida por alunos e professores revela uma crise de qualidade e condições que ameaça o desenvolvimento do capital humano. As escolas continuam sem condições, os professores mal remunerados, os currículos desactualizados.
A tendência das elites políticas e económicas para procurarem educação no estrangeiro é reveladora: não confiam no sistema que governam. A fuga para fora é uma confissão tácita de falência interna.
O mesmo se aplica à saúde: os dirigentes preferem clínicas privadas ou tratamentos no exterior. Na realidade, quando adoecem, a maioria dos dirigentes e dos membros da elite prefere morrer no estrangeiro, regressando apenas para ser sepultada em Angola. Quanto aos hospitais, importa notar que muitos se apresentam como monumentos dispendiosos de betão, mas carecem de assistência médico-medicamentosa adequada para a maioria dos cidadãos.
Se é verdade que o presidente destacou avanços positivos no sector da saúde – como o crescimento da rede sanitária de 320 para 3355 unidades desde 1975, investimentos em hemodiálise, cirurgia robótica e hospitais modernos, a redução da mortalidade infantil, materna e em menores de cinco anos, a formação de dezenas de milhares de profissionais de saúde –, a realidade no terreno revela limitações estruturais e desigualdades persistentes. Embora a expansão da rede seja real, muitas unidades nos municípios continuam sem médicos residentes, sem medicamentos ou com instalações degradadas. A qualidade dos serviços permanece baixa, sobretudo fora de Luanda, com carência de equipamentos básicos operacionais. A introdução da cirurgia robótica, embora inovadora, parece desajustada face às prioridades reais da maioria da população, que enfrenta longas filas, diagnósticos tardios e medicamentos inacessíveis. Os profissionais de saúde, apesar de mais numerosos, estão sobrecarregados, mal remunerados e sem incentivos para se fixarem em zonas rurais. Embora os indicadores de mortalidade tenham melhorado, continuam piores do que a média regional e, segundo o UNICEF e a OMS, Angola permanece entre os países com piores indicadores de saúde pública. O discurso, centrado em números absolutos, carece de medidas estruturais que assegurem equidade no acesso, retenção de quadros e medicamentos acessíveis – exigências centrais da população.
No final, o Estado não garante o direito à saúde nem à educação, pilares de qualquer nação próspera.
A desconsideração pelas necessidades básicas da população é uma constante.
O custo de vida aumenta, com maior ou menor velocidade, mas constantemente. A pobreza agrava-se, a fome alastra (são as organizações internacionais a dizê-lo, não nenhum órgão com uma predisposição para a má vontade: https://www.voaportugues.com/a/inseguran%C3%A7a-alimentar-deve-piorar-este-ano-diz-relat%C3%B3rio-mundial-sobre-a-crise-alimentar/7583045.html) e o discurso oficial ignora esses dramas. A palavra “corrupção”, outrora central na narrativa presidencial, desapareceu do discurso de 2025.
O Estado angolano, tal como se apresenta, não é um instrumento de promoção da Nação, mas sim um mecanismo de protecção de interesses individuais que, porventura, terão capturado o Estado.
A governação é feita para os poucos que têm acesso ao poder, não para os muitos que vivem na margem. A institucionalidade serve para legitimar a concentração de recursos, não para os distribuir.
A Nação, enquanto projecto colectivo, está ausente. O Estado, enquanto estrutura de serviço público, está capturado. O discurso do presidente, ao ignorar os problemas reais e ao refugiar-se em estatísticas e celebrações, confirma essa ausência. Não há Estado para a Nação, há Estado para o poder.
A celebração dos 50 anos da independência deveria ser uma oportunidade para reavaliar o percurso nacional, para reconhecer os erros, para propor caminhos de reforma. Mas o que se vê é a reafirmação da continuidade, da negação, da desconexão.
A Nação angolana precisa de um Estado que a sirva, que a represente, que a proteja. Precisa de um Estado que promova o emprego, que garanta a educação e a saúde, que respeite as liberdades, que enfrente a corrupção. Precisa de um Estado que seja mais do que um palco de discursos, que seja um espaço de acção.
A Nação sem Estado é uma realidade dolorosa, mas é também um apelo à mudança. Angola não pode continuar a viver entre a promessa e a frustração. A construção de uma Nação próspera exige um Estado presente, eficaz, transparente. Exige coragem política, compromisso ético, vontade de servir. O tempo das celebrações vazias terminou. É preciso reconstruir o Estado para que a Nação possa existir.

