Por Tiago J.B. Paqueliua
Resumo
O presente artigo analisa criticamente o ataque terrorista de setembro de 2025 em Mocímboa da Praia, particularmente no bairro Filipe Nyusi, onde quatro civis foram assassinados, incluindo um professor decapitado. A investigação articula o episódio com o contexto histórico da insurgência em Cabo Delgado (2017–2025), expondo a repetição de discursos oficiais estéreis e a incapacidade estrutural do Estado moçambicano em proteger os seus cidadãos. Com recurso a vozes académicas, filosóficas e políticas, demonstra-se que a violência em curso não se limita ao plano físico, mas representa também o colapso da soberania e da esperança nacional.
Palavras-chave
Cabo Delgado; Mocímboa da Praia; terrorismo; insurgência; violência; soberania; Estado moçambicano; retórica oficial; decapitação; exclusão social.
A barbárie no bairro Filipe Nyusi
O mais recente ataque terrorista em Mocímboa da Praia, confirmado pelo administrador distrital Sérgio Cipriano, reacende o pesadelo que a população vive desde outubro de 2017, quando os primeiros sinais de insurgência jihadista explodiram no norte de Cabo Delgado. Entre domingo e segunda-feira, insurgentes invadiram o bairro Filipe Nyusi, na vila-sede, ceifando quatro vidas. Duas das vítimas foram decapitadas, entre elas um professor — símbolo trágico da vulnerabilidade de quem deveria ser guardião da esperança e do conhecimento.
A violência não é apenas física. Como observa Achille Mbembe, “o terror visa a alma antes de atingir o corpo”¹. A decapitação de um educador transmite uma mensagem de domínio psicológico: destruir a fé no futuro, mutilar a própria ideia de civilização.
Entretanto, a resposta estatal manteve-se no mesmo tom enfadonho e repetitivo: “As Forças de Defesa e Segurança estão no encalço dos insurgentes”. Palavras que ecoam há oito anos, transformando-se em epitáfio de uma soberania que, em Mocímboa da Praia, já não existe.
Contexto histórico: da insurgência ao impasse
Cabo Delgado tornou-se, desde 2017, palco de um conflito que mistura pobreza extrema, exclusão social, tráfico ilícito e ambições jihadistas. Segundo o International Crisis Group, a insurgência cresceu aproveitando-se da “marginalização de comunidades locais em torno da exploração do gás natural”². A promessa de prosperidade nunca chegou às populações, mas sim a violência.
O jornalista e académico Joseph Hanlon advertia que “a guerra em Cabo Delgado é também uma guerra da exclusão”³, em que jovens sem perspectivas foram cooptados por narrativas religiosas radicais e redes criminosas. Desde então, ataques brutais, decapitações e deslocamentos massivos têm sido a marca da região. O ACNUR estimava, em 2023, mais de 1 milhão de deslocados internos⁴ — uma ferida aberta na dignidade nacional.
A banalização da violência e a anestesia social
As declarações de Cipriano inserem-se num padrão em que a tragédia é administrada como mera rotina estatal. Os mortos são reduzidos a números, os funerais a notas de rodapé, e a resposta política a frases pré-fabricadas. Como afirmou Hannah Arendt, “a maior das maldades é cometida em silêncio e com banalidade”⁵.
A cada repetição da frase “estamos no encalço dos insurgentes”, o governo normaliza a violência e anestesia a sociedade. Mocímboa da Praia, uma vila que já foi estratégica para o comércio e a pesca, tornou-se laboratório da indiferença política e da impunidade armada.
Mocímboa como símbolo do fracasso da soberania
Não é apenas a vila que está sob ataque; é o próprio Estado. O simbolismo do ataque ao bairro com o nome de Filipe Nyusi é cruel: a insurgência atingiu não só o povo, mas também a narrativa oficial do Estado.
O assassinato de um professor é um ato de guerra contra o futuro. Como lembra Frantz Fanon, “matar o intelectual é perpetuar a escravidão mental de um povo”⁶. Cabo Delgado, ao perder seus educadores nas mãos do terror, perde também a linha de transmissão do conhecimento e da resistência cultural.
A cegueira governativa e o silêncio cúmplice
Não basta alegar que os terroristas são perseguidos; é urgente reconhecer que a máquina do Estado falha em proteger os seus cidadãos. António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas, declarou que “nenhum desenvolvimento sustentável é possível quando comunidades vivem sob o espectro do terror”⁷. Em Cabo Delgado, porém, a governação parece não ter absorvido esta lição, continuando a tratar cada massacre como incidente isolado, em vez de como sintoma de uma crise estrutural.
A cegueira é tamanha que a dor coletiva é empurrada para a periferia do debate nacional, enquanto as elites políticas se concentram em megaprojetos de gás e retóricas sobre soberania.
Conclusão: O Estado decapitado
O ataque de Mocímboa da Praia não matou apenas quatro civis; decapitou, mais uma vez, a confiança pública no Estado. A cada comunicado vazio, o governo assassina a esperança, perpetuando um ciclo de violência e descrédito.
A retórica oficial é hoje tão letal quanto as lâminas dos insurgentes: mata lentamente a fé na República, anestesia a dor social e normaliza a barbárie.
Como advertiu Amílcar Cabral, “ninguém liberta ninguém; ninguém se liberta sozinho: os homens libertam-se em comunhão”⁸. Mocímboa da Praia continua à espera dessa comunhão nacional que nunca chega, prisioneira entre o ferro dos insurgentes e o silêncio cúmplice das autoridades.
Mocímboa da Praia não é apenas uma vila abandonada. É o retrato cru de um Estado decapitado.
Glossário
Insurgência jihadista – Movimento armado de inspiração religiosa radical, ativo em Cabo Delgado desde 2017.
Decapitação – Ato extremo de violência utilizado como arma psicológica para semear terror.
Retórica oficial – Conjunto de declarações repetitivas e estéreis do Estado, sem correspondência prática na proteção dos cidadãos.
Exclusão social – Marginalização sistemática das populações locais dos benefícios económicos dos recursos naturais.
Soberania – Capacidade de o Estado garantir segurança e dignidade aos cidadãos no seu território.
Epílogo
A tragédia de Mocímboa da Praia não pode ser lida apenas como mais um capítulo de violência, mas como a prova histórica da falência da governação em Moçambique. Quando um Estado se limita a repetir fórmulas enquanto o seu povo é decapitado, já não se trata apenas de incompetência: é cumplicidade por omissão.
O futuro de Cabo Delgado — e de Moçambique — dependerá da coragem de romper com esta anestesia oficial e de construir uma resposta coletiva, cidadã e soberana ao terror. Caso contrário, a cada ataque, não será apenas uma vida ceifada, mas um pedaço da própria República que será decapitado.
Referências
1. Mbembe, A. (2003). Necropolítica. Paris: Éditions La Découverte.
2. International Crisis Group (2021). Stemming the Insurrection in Mozambique’s Cabo Delgado. Brussels.
3. Hanlon, J. (2020). Cabo Delgado: The War of Exclusion. London School of Economics Working Paper.
4. ACNUR (2023). Mozambique Situation: Displacement Overview. Geneva.
5. Arendt, H. (1963). Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil. New York: Viking Press.
6. Fanon, F. (1961). Os Condenados da Terra. Paris: Maspero.
7. Guterres, A. (2021). Discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas, 23/09/2021.
8. Cabral, A. (1974). Unidade e Luta. Lisboa: Sá da Costa.