Por Quinton Nicuete
Cabo Delgado está a viver um pesadelo dentro do próprio pesadelo. Não bastasse a violência dos insurgentes, agora são as Forças de Defesa e Segurança (FDS), a serem acusadas, repetidamente, de transformar civis em alvos, executando-os a sangue frio em alto mar e nas aldeias costeiras.
Na terça-feira, 2 de Setembro, por volta das 15h10, militares bombardearam duas embarcações de pesca na zona de Maguerre. Eram pescadores da ilha de Matemo, distrito de Ibo, foram tratados como inimigos. O ataque deixou 43 mortos confirmados e apenas 7 sobreviventes. “As pessoas estavam em duas embarcações, não tinham armas, mas foram atacadas como se fossem terroristas”, desabafa um residente local em choque.
O que aconteceu em Maguerre não é um episódio isolado, mas parte de uma cadeia de atrocidades que começa a parecer sistemática. Num passado recente, na comunidade de Mefumgo, distrito de Quissanga, três civis, uma mulher e dois jovens, Momade e Ibade, foram mortos depois de um barco que transportava sal ter sido intercetado pela Marinha. Testemunhas afirmam que os militares retiraram as pessoas do barco e desapareceram com elas. Pouco depois, os corpos apareceram crivados de balas. O paradeiro dos restantes passageiros continua sem resposta.
“Dois jovens da nossa família foram executados. A minha madrasta está em luto porque eram primos dela. Até hoje ninguém explica o que aconteceu, ninguém responde”, disse uma parente, entre lágrimas e revolta.
As denúncias acumulam-se e todas apontam para o mesmo padrão: execuções sumárias, abusos, impunidade. Famílias pedem justiça, mas o silêncio do Estado é ensurdecedor.
Ainda em Julho, mais de 100 pescadores foram abatidos em Pangane, distrito de Macomia, num massacre que ficou registado em vídeos partilhados nas redes sociais. As imagens mostram corpos alinhados na areia e relatos dão conta de que mais de 76 pessoas foram fuziladas pelas FADM. Até hoje, nenhuma explicação oficial foi dada.
Cabo Delgado vive uma dupla guerra: contra os insurgentes e contra quem devia garantir a segurança da população. Os militares, que chegaram para proteger, são agora denunciados como algozes.
O Estado moçambicano não só mantém silêncio cúmplice como parece empenhado em varrer para debaixo do tapete crimes que podem configurar crimes de guerra. A estratégia é clara: controlar a narrativa, negar os factos e silenciar as comunidades aterrorizadas.
Enquanto Maputo discursa sobre reconstrução e pacificação, a realidade no terreno é outra: civis continuam a ser abatidos como se fossem inimigos. Cabo Delgado está transformado num cemitério sem justiça, onde as vítimas não têm nome nem voz, e os culpados circulam de farda e arma na mão, intocáveis. Moz24h