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MANICA: QUANDO O OURO ALIMENTA A CORRUPÇÃO E SUSTENTA O PODER POLÍTICO

Foto: Estacio Valoi/Ouro/ Muaja/Ancuabe

Foto: Estacio Valoi/Ouro/ Muaja/Ancuabe

Jerry Maquenzi

 

Manica sempre foi apresentada como um território abençoado pela natureza: terras férteis, rios abundantes e, sobretudo, jazidas riquíssimas de ouro e outros minerais. Mas, por trás desse potencial, esconde-se uma das faces mais obscuras da economia moçambicana: o garimpo ilegal, a captura das instituições públicas e a promiscuidade entre elites políticas e investidores estrangeiros.

O recente vídeo do Centro de Integridade Pública (CIP) mostra de forma contundente aquilo que muitos em Moçambique já sabiam, mas poucos ousavam denunciar: as áreas de mineração artesanal em Manica não são clandestinas. Pelo contrário, são espaços bem conhecidos, frequentemente visitados e até protegidos por autoridades locais, fiscais do Ministério dos Recursos Minerais e Energia (MIREME) e membros das forças de segurança. O que se apresenta como “ilegalidade tolerada” é, na verdade, um sistema de corrupção institucionalizado, onde todos sabem de tudo, mas fingem desconhecer para tirar benefícios próprios.

Este artigo pretende, a partir das evidências trazidas pelo CIP e dos meus estudos sobre mineração artesanal em Moçambique, argumentar que o problema da mineração em Manica não é apenas económico ou ambiental. Ele é profundamente político, pois revela como o ouro e outros minerais se transformaram em instrumentos de financiamento partidário, sustentando o poder político vigente e tornando-se intocáveis para qualquer tentativa de reforma estrutural.

  1. O Mito da Clandestinidade: Em Manica, Todos Sabem de Tudo

Um dos pontos mais fortes da reportagem do CIP é a desconstrução do mito da “clandestinidade”. Nenhuma zona de mineração artesanal é desconhecida das autoridades locais, distritais ou provinciais. Pelo contrário:

  • As áreas de garimpo alimentam o comércio local, com mercados de alimentos, bares e até prostituição.
  • O fluxo de garimpeiros movimenta serviços e produtos, beneficiando as economias informais dos distritos.
  • Os fiscais e a polícia sabem exactamente onde estão as minas, mas a sua presença serve mais para negociar subornos do que para aplicar a lei.

Assim como em Cabo Delgado, em Manica o garimpo é parte da vida quotidiana das comunidades. E a pergunta que se impõe é simples: se toda agente sabe, se as minas são acessíveis e se o garimpo movimenta milhares de pessoas, por que razão o Estado não consegue regularizar ou formalizar essa actividade? A resposta está na natureza política do problema.

  1. O Papel das Autoridades: Fiscais ou Beneficiários?

Os fiscais do MIREME são frequentemente apresentados como os guardiões da legalidade. Mas, eles chegam às zonas de garimpo com recursos próprios, combustível, transporte, alimentação e, por isso, esperam “compensação” dos próprios mineradores ou empresários. Na prática, a fiscalização não serve ao interesse público, mas sim ao interesse pessoal dos fiscais.

Esse modelo cria um círculo vicioso da corrupção:

  • O Estado não fornece recursos adequados para fiscalização.
  • Os fiscais recorrem a esquemas de “autofinanciamento”.
  • Para compensar os custos, transformam a fiscalização em negócio privado.
  • Mineradores e empresários aceitam pagar subornos, porque assim ficam protegidos.
  • O sistema perpetua-se, sem transparência nem responsabilidade.

E aqui entra um ponto essencial: em Manica, a corrupção não é apenas tolerada. Ela é esperada. Mineradores sabem que precisam pagar. Empresários estrangeiros já chegam com “orçamentos de suborno”. Autoridades policiais e locais já têm valores fixos para cada transacção.

  1. O Conluio entre Empresários Estrangeiros e Elites Políticas

O garimpo artesanal é apenas a face mais visível da mineração em Manica. Por detrás dele, operam empresas estrangeiras, muitas vezes em parceria com sócios nacionais. E quem são esses sócios? Frequentemente, membros do governo ou do partido no poder.

Esse conluio tem várias dimensões:

  • Protecção política: empresas com ligações partidárias tornam-se intocáveis, mesmo quando poluem rios ou expulsam comunidades.
  • Corrupção institucionalizada: fiscais que tentam aplicar a lei são neutralizados por superiores hierárquicos, porque “mexer” com certas empresas significa mexer com dirigentes poderosos.
  • Financiamento político: em períodos de campanha, essas empresas disponibilizam viaturas, dinheiro e logística ao partido no poder, em troca de protecção futura.

A mineração em Moçambique não é apenas uma actividade económica, mas um campo de captura do Estado, onde elites políticas utilizam o sector para enriquecer e manter-se no poder. O ouro de Manica não é apenas recurso natural; é recurso político.

  1. O Impacto Social: Juventude Empurrada para o Garimpo

Se em Cabo Delgado observei adolescentes de 10 a 14 anos no garimpo, em Manica o cenário não é muito diferente. A falta de emprego, a baixa rentabilidade da agricultura e a ausência de alternativas empurram milhares de jovens para a mineração artesanal.

Esses jovens trabalham sem equipamento de protecção, expostos a desabamentos, doenças e violência. O garimpo é, para eles, a única forma de sobrevivência imediata. E é aí que reside a perversidade do sistema: enquanto jovens arriscam a vida para extrair ouro, as elites políticas e empresariais acumulam riqueza através de esquemas de corrupção.

A juventude, que deveria ser o motor de desenvolvimento do país, é transformada em mão-de-obra descartável de uma economia ilegal. E, ao mesmo tempo, o garimpo alimenta práticas que reforçam desigualdades: prostituição juvenil, degradação ambiental que afecta comunidades camponesas e conflitos entre garimpeiros e empresas formais.

  1. O Meio Ambiente como Vítima Invisível

O impacto ambiental da mineração artesanal em Manica é devastador: rios contaminados por mercúrio, solos degradados, florestas devastadas. No entanto, este não é um tema central para as autoridades, porque o ambiente não gera suborno imediato.

Quando alguma acção de fiscalização ocorre, ela limita-se a aplicar multas ou suspender temporariamente actividades. Mas o problema estrutural – a falta de alternativas para as famílias e a captura do sector por elites políticas, permanece intocado.

Pior: muitas vezes, as próprias comunidades que reclamam contra a degradação ambiental veem-se silenciadas porque dependem economicamente do garimpo. Quando a agricultura não garante rendimento, o garimpo torna-se a única fonte de sobrevivência.

  1. O Ouro como Moeda de Poder Político

Talvez o ponto mais alarmante da mineração em Manica seja o seu papel no financiamento político. Empresas de mineração estrangeiras, associadas a sócios nacionais ligados ao governo, não apenas operam com impunidade: elas contribuem diretamente para campanhas eleitorais.

  • Disponibilizam viaturas e meios de transporte durante campanhas.
  • Oferecem financiamento directo a candidatos do partido no poder.
  • Tornam-se contribuintes generosos em eventos de angariação de fundos.

O resultado é claro: qualquer tentativa de regular o sector enfrenta resistência, porque mexer com a mineração em Manica significa mexer com os recursos que alimentam a máquina política nacional.

O ouro, que deveria beneficiar a população através de receitas fiscais, infraestrutura e empregos formais, acaba por sustentar a perpetuação do poder político de uma elite.

  1. As Soluções que Não Resolvem

Nos últimos anos, algumas medidas foram tomadas, como suspensão temporária de operações e aplicação de multas por poluição. Embora importantes essas acções são paliativas. Não tocam no coração do problema: a captura do sector por interesses políticos e privados.

A verdadeira solução exige medidas estruturais:

  • Transparência total na atribuição de títulos mineiros, com divulgação dos beneficiários efetivos.
  • Reforma da fiscalização, garantindo recursos e eliminando a prática de “autofinanciamento” dos fiscais.
  • Formalização da mineração artesanal, transformando garimpeiros em cooperativas reconhecidas e equipadas, para que possam trabalhar com segurança e legalidade.
  • Separação entre política e negócios, impedindo que dirigentes governamentais tenham participação em empresas mineiras.

Sem essas medidas, qualquer esforço continuará a ser cosmético.

  1. Um Problema Nacional, não Provincial

O caso de Manica, mostrado pelo CIP, não é excepção. Como argumentei no primeiro artigo sobre Cabo Delgado, o garimpo ilegal é um problema nacional, que atravessa fronteiras provinciais e conecta-se com redes internacionais de contrabando.

De Montepuez a Manica, de Tete a Nampula, repete-se o mesmo padrão:

  • Mineradores artesanais empurrados pela pobreza.
  • Autoridades que sabem e participam.
  • Empresários estrangeiros protegidos por sócios políticos.
  • Recursos naturais usados para enriquecer elites e financiar campanhas.

A mineração artesanal e ilegal é, portanto, um espelho do Estado moçambicano: fraco para os pobres, mas cúmplice e protector dos poderosos.

Conclusão

Manica simboliza o colapso da fronteira entre economia e política em Moçambique. O ouro que deveria ser uma bênção para o desenvolvimento é, na prática, uma maldição que sustenta a corrupção, agrava a pobreza juvenil, destrói o meio ambiente e financia a perpetuação de um sistema político capturado.

O desafio não é técnico, mas político. Enquanto a mineração continuar a ser fonte de financiamento partidário, qualquer tentativa de reforma será sabotada. É por isso que o debate sobre o garimpo ilegal deve deixar de ser visto apenas como questão de economia informal ou de impacto ambiental. Trata-se, acima de tudo, de uma questão de democracia e soberania.

O ouro de Manica não é apenas riqueza mineral. É a prova de como os recursos naturais podem ser usados para consolidar o poder de poucos, à custa do futuro de muitos. E é também um alerta: sem transparência, sem reforma e sem coragem política, o país continuará condenado a ver o seu subsolo alimentar não o desenvolvimento, mas a corrupção e a desigualdade.

 

Referência

CIP (30.09.2025). O Custo Invisível do Ouro em Manica: Poluição hídrica por mercúrio e seus efeitos nas comunidades. Disponível em: https://www.cipmoz.org/2025/09/30/o-custo-invisivel-do-ouro-em-manica-poluicao-hidrica-por-mercurio-e-seus-efeitos-nas-comunidades/.

Maquenzi, J. & Feijó, J. (2019). “Maldição dos recursos naturais: Mineração artesanal e conflitualidade em Namanhumbir”. Observador Rural nº 75. Maputo. Observatório do Meio Rural.

_________________________ (2023). “Deslocações forçadas e pressão sobre o garimpo em Namanhumbir”. Observador Rural nº 134. Maputo. Observatório do Meio Rural.

­­­­__________________________ (2025). A Economia Ilícita em Cabo Delgado: Conivência e Conflitualidade entre Sectores de uma Classe-Estado e da População. In Destaque Rural nº 314. Maputo. Observatório do Meio Rural.

 

 

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