Economia

INSURGÊNCIA, SA: Quando a Jihad se Formaliza em “Receitas Próprias”

Jerry Maquenzi

A insurgência em Cabo Delgado já passou por várias metamorfoses. Se no início, em 2017, o discurso dos combatentes era messiânico – “Allah vai nos apoiar, não precisamos de mais ninguém” (Redacção, 28.01.2018), e a prática era marcada por massacres brutais, hoje a realidade é outra. O grupo, enfraquecido por anos de combate e pela perda de líderes carismáticos (Abu Kital, Ali Mahando, Amurane Adamo e Ibn Omar e outros de nacionalidade tanzaniana), transformou-se numa espécie de empresa criminosa que sobrevive extorquindo populações locais. De uma guerra ideológica contra os “infiéis”, passou-se para uma lógica de “receitas próprias”: cobranças monetárias em estradas, pagamentos forçados para circulação e pequenas pilhagens. É a insurgência transformada em INSURGÊNCIA, Sociedade Anónima.

  • Linha do Tempo da Violência (2017–2025)

O gráfico da evolução do total das fatalidades ilustra quatro grandes fases:

  1. 2017–2019: Início da violência, com massacres em aldeias, destruição de igrejas e ataques a símbolos do Estado. O objectivo era demonstrar força e espalhar medo.
  2. 2020-2021: Auge da violência, com mais de 1.700 mortos, em 2020. O ataque a Palma e a tomada de Mocímboa da Praia mostraram capacidade ofensiva e coordenação inéditas. Em 2021, a chegada das tropas do Ruanda e da SAMIM (Missão da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral em Moçambique) provoca queda nas fatalidades, mas ainda acima de mil vítimas.
  3. 2022–2023: Fase de retração; a insurgência perde força, mas mantém células móveis e acções localizadas.
  4. 2024–Agosto/2025: Recrudescimento selectivo; embora as mortes aumentem em 2024 (com a saída da SAMIM), em 2025 percebe-se outra tendência: menos massacres colectivos, mais cobranças monetárias, a “portagem do medo”.

 

 

Gráfico 1: Evolução de número de fatalidades da violência armada em Cabo Delgado

Fonte: Adaptado de dados da ACLED (vários anos)

  • Os Discursos Contraditórios

Os insurgentes, através de vídeos e testemunhos, mostram uma narrativa cada vez mais contraditória.

  1. No início (2017–2018): proclamavam que “Allah vai nos apoiar, não precisamos de ninguém”, insistindo que sua luta era contra os “infiéis” e que não careciam de apoios externos.
  2. Hoje: o discurso mudou e fragmentou-se (ACLED, 16.08.2025):
    • Em bloqueios de estrada, insurgentes afirmam: “Estamos aqui a trabalhar normalmente”, apresentando a insurgência como um “emprego”.
    • Outros combatentes, entretanto, admitem dificuldades, relatando escassez de comida e problemas logísticos, o que revela debilidade e desgaste interno.

Essa contradição mostra como a insurgência já não se sustenta unicamente no discurso religioso, mas sim numa prática pragmática de sobrevivência financeira.

 

  • Líderes Abatidos e Impactos na Estratégia

A eliminação sucessiva de comandantes entre 2021 e 2023 enfraqueceu a hierarquia insurgente. Sem liderança centralizada, o grupo perdeu capacidade de planear ataques de larga escala, como os de Mocímboa da Praia, Macomia ou Palma. O resultado foi à fragmentação em pequenas células descentralizadas, que passaram a viver de recursos locais. Cada célula procura a sua própria fonte de financiamento, seja através de extorsão, pilhagem ou pequenas emboscadas. Esse vazio de comando abriu caminho para a insurgência transformar-se numa rede mais próxima de uma economia paralela violenta do que de um movimento jihadista coeso.

  • Principais Acções ao Longo do Tempo
  1. Massacres (2018–2020): decapitações públicas e aldeias incendiadas como forma de propaganda pelo terror.
  2. Saques e pilhagens: roubo de alimentos, medicamentos e combustível, indispensáveis à sobrevivência em acampamentos remotos.
  3. Sequestros: homens forçados a integrar o grupo; mulheres e crianças sequestradas como reféns ou submetidas a trabalhos forçados.
  4. Extorsão (fase actual, 2024–agosto/2025):
  • Bloqueios em estradas, sobretudo na N380, onde camponeses e comerciantes são obrigados a pagar para transitar.
  • Os valores cobrados variam entre 000 e 150.000 meticais (780–2.240 USD), montantes muito elevados para famílias rurais (ACLED, 16.08.2025). Há relatos de existência de algumas portagens que o grupo cobra valores inferiores a 50.000 meticais.

Esta prática aproxima os insurgentes de uma máfia local, que tributa a população vulnerável em vez de organizar ataques de grande escala.

  • Enfraquecimento ou Adaptação?

As mudanças no padrão de actuação permitem duas leituras complementares:

  1. Enfraquecimento
  • A insurgência perdeu capacidade de realizar ataques coordenados de grande escala.
  • A redução dos massacres pode reflectir falta de meios logísticos, armas e liderança.
  • Os relatos de fome e escassez mostram que, internamente, a estrutura está fragilizada.
  1. Adaptação
  • A diminuição da violência visível pode ser uma estratégia deliberada para reduzir a pressão internacional e a resposta militar.
  • Ao substituir massacres por extorsão, o grupo garante fluxo de caixa contínuo sem chamar tanta atenção mediática.
  • A insurgência aprende a “contabilizar o medo”: menos custo operacional, menos risco de confronto, mais receita líquida.

O que parece fraqueza pode ser também uma forma mais sustentável de sobrevivência prolongada, numa guerra que já dura cerca de oitos anos.

  • Comparação com os Acontecimentos Atuais

Comparando o passado com o presente, fica claro o desvio estratégico:

  1. Antes (2017–2020): a lógica era performativa, usar a violência como espetáculo e propaganda.
  2. Agora (2024–2025): a lógica é fiscal, transformar o medo em renda e a guerra numa espécie de negócio armado.

E aqui surge uma questão incômoda: até que ponto este sistema de extorsão acontece sem o conhecimento ou até com a conivência de elementos das forças armadas e de segurança? Se insurgentes conseguem montar bloqueios e cobrar valores em estradas principais, será plausível imaginar que parte desse “negócio” é tolerado ou partilhado por indivíduos ligados às forças estatais?

 

 

  • Conclusão

A insurgência em Cabo Delgado já não é a mesma que surgiu em 2017. O grupo que antes se apresentava como uma cruzada religiosa contra os “infiéis”, hoje age como um cobrador de impostos clandestino. De massacres mediáticos, passou-se a “portagens” silenciosos. A insurgência tornou-se uma empresa de guerra, que tributa a pobreza e converte o medo em moeda.

Esse cenário levanta três alertas:

  1. A população civil continua a pagar o preço mais alto, agora não apenas com a vida, mas também com os escassos rendimentos.
  2. O discurso insurgente, cada vez mais contraditório, mostra um grupo dividido entre fé, sobrevivência e negócio.
  3. A dúvida mais perturbadora: será que este sistema de extorsões sobrevive apenas pela força dos insurgentes, ou encontra terreno fértil em cumplicidades dentro das próprias forças de segurança?

Do machete ao recibo, do grito religioso ao cálculo contabilístico, a insurgência de Cabo Delgado mostra que a guerra pode mudar de forma, mas continua a aprisionar os mesmos: os camponeses e comerciantes que não têm para onde fugir, e que agora, além de temer pela vida, precisam abrir a carteira.

Referências

ACLED (16.08.2025). Cabo Ligado Update: 30 de Junho – 13 de Julho 2025. Disponível em: https://acleddata.com/pt/update/cabo-ligado-update-30-de-junho-13-de-julho-2025.

Redacção (28.01.2018). Veja o vídeo dos atacantes de Mocímboa da Praia planejando mais ataques. Disponivel em: https://portalmoznews.com/2018/01/veja-video-dos-atacantes-mocimboa-da-praia-planejando-ataques.html.

Redacção (13.03.2024). Governo diz que terroristas têm nova liderança. Disponivel em: https://www.dw.com/pt-002/governo-diz-que-terroristas-t%C3%AAm-nova-lideran%C3%A7a-e-nova-estrat%C3%A9gia/a-68510368

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