Moz24h Blog Sociedade Gamito rompe o silêncio: “Eleições em Moçambique não são livres, nem justas”
Sociedade

Gamito rompe o silêncio: “Eleições em Moçambique não são livres, nem justas”

Por: Quinton Nicuete

Num raro momento de franqueza, Hermenegildo Gamito, antigo Presidente do Conselho Constitucional de Moçambique, quebrou o silêncio institucional e fez declarações incendiárias na “Grande Entrevista” transmitida esta quarta-feira, 18 de junho, pela STV e STV Notícias. Em conversa com a jornalista Olívia Massango, Gamito abriu a caixa de Pandora sobre os bastidores do poder político e judicial no país — e não poupou ninguém.

“As eleições em Moçambique não são livres, nem justas, nem transparentes”, afirmou sem hesitar. A declaração caiu como uma bomba num país onde os ciclos eleitorais são frequentemente contestados e marcados por alegações de fraude, exclusão política e repressão.

O mais chocante ainda estava por vir. Durante a revisão constitucional de 2004, Gamito revelou que estava pronta uma proposta para criar um verdadeiro Tribunal Constitucional, com independência e autoridade reforçadas. Contudo, a proposta foi alterada “num domingo à tarde”, a escassas 24 horas da sua aprovação. Sem qualquer justificação técnica ou jurídica, o termo “Tribunal” foi substituído por “Conselho Constitucional”.

“A mudança foi feita nos bastidores, por ordens da Casa Branca”, denunciou, referindo-se à sede do partido no poder, a Frelimo. Segundo Gamito, essa manobra mutilou a independência do sistema judicial e subordinou a justiça constitucional à vontade política.

Apesar da designação oficial, sustentou: “O Conselho Constitucional é tecnicamente um tribunal, julga como um tribunal. Mas foi impedido de sê-lo em nome.”

Outro momento marcante foi a explicação inédita da sua renúncia ao cargo em 2019, na sequência de um diferendo sobre a nomeação de um novo juiz conselheiro. Gamito levou a questão à Assembleia da República, conforme os trâmites constitucionais. No entanto, num encontro com o Presidente da República, Filipe Nyusi, o diálogo revelou o peso da arrogância do poder. “O Presidente perguntou a minha opinião pessoal. Eu disse: o meu querer está na Constituição.” A resposta não agradou.

E a cena foi simbólica: “Quando o elevador chegou, ele entrou e deixou-me a falar sozinho. Não me convidou a entrar. Foi nesse instante que decidi que não podia continuar.” Doze dias depois, apresentou formalmente a sua renúncia, sem escândalo, mas com a serenidade que agora ganha outro significado.

Gamito não parou por aí. Lançou duras críticas à cultura de corrupção nas instituições públicas, referindo-se à ostentação ilícita de figuras do poder: “Alguém entra como presidente do Conselho Constitucional e sai com dois prédios na avenida principal de Maputo. Isso não pode ser normal.”

Para ele, a grande corrupção institucionalizada alimenta a pequena corrupção que corrói a ética na função pública. “O Estado tem medo de agir”, lamentou.

Quanto ao adiamento das eleições distritais em 2024, foi direto: “Foi um atropelo à Constituição.” Alertou que alterar prazos constitucioniências políticas fragiliza a credibilidade do sistema democrático. “O Presidente jura cumprir e fazer cumprir a Constituição. Ela deve estar acima de todos nós.”

Criticou ainda a partidarização das instituições e apelou à inclusão política: “No dia em que o nosso país fizer uma real inclusão, deixaremos de enfrentar muitos dos problemas que hoje se levantam.”

No fecho da entrevista, Gamito lançou um apelo à acção cívica. Para ele, Moçambique deve romper com a democracia de fachada e avançar para uma democracia plena, sustentada em três pilares: liberdade e participação efectiva dos cidadãos; justiça e moralidade como base das decisões públicas; e instituições transparentes e livres de amarras partidárias.

“A democracia verdadeira não se sustenta por slogans. Exige coragem para cortar as amarras políticas que prendem as instituições.”

A entrevista de Hermenegildo Gamito não foi apenas um desabafo. Foi um grito de alerta — uma convocatória nacional à integridade, à legalidade e à cidadania activa. “Sem respeito pela Constituição, sem inclusão e sem combate eficaz à corrupção, não há democracia possível.”

Com a calma dos sábios e a determinação dos justos, Gamito deixou claro: o tempo de fingir acabou. Moçambique ou se reconstrói pela Constituição e pela ética, ou afundará ainda mais na crise de legitimidade. (Moz24h)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Sair da versão mobile