Por Quinton Nicuete
Cabo Delgado volta a ser palco de mais um paradoxo que desafia a sensibilidade colectiva: no próximo dia 4 de Outubro, data em que o país assinala o Dia da Paz e Reconciliação Nacional, Pemba acolherá o festival SUPA (Somos Unidos Pela Paz). O evento, apresentado como um espaço de promoção da diversidade cultural e de profissionalização de jovens artistas, terá como protagonistas nomes conhecidos do panorama musical local, como Slim Nigger, Djizii, Luckie e Rei Bravo.
A retórica é a de paz, mas a realidade no terreno é de guerra. Em distritos como Balama, Ancuabe, Mocímboa da Praia, Macomia, Nangade, Palma, Meluco e Montepuez, as populações continuam a ser vítimas de ataques armados que resultam em mortes, deslocações forçadas e perdas materiais devastadoras. Casas abandonadas, famílias desfeitas e comunidades inteiras forçadas a fugir são, hoje, o retrato de uma província que ainda procura respirar segurança. Todos sabem… será é negligência?
Neste contexto, a realização de um festival financiado com valores na ordem dos cinco milhões de meticais levanta interrogações legítimas: de que paz se fala quando a morte e o medo continuam a dominar o quotidiano de milhares de pessoas? Que reconciliação se celebra num território onde o som dos tiros ecoa mais alto do que a música?
A iniciativa cultural, apoiada por organizações locais e pelo município e governo, tem méritos inegáveis no que toca à valorização da juventude e da arte como veículo de resistência e esperança. No entanto, não se pode ignorar a contradição gritante entre o investimento feito para um espectáculo festivo e a realidade de famílias que sobrevivem com parcos recursos, muitas vezes privados de alimentos e de assistência humanitária adequada.
Celebrar a paz em Cabo Delgado é, no mínimo, um gesto de ironia. É também um exercício de memória selectiva, que arrisca desvirtuar o sentido da própria data que recorda o fim da guerra civil em Moçambique. Se é certo que a cultura e a arte têm um papel fundamental na coesão social, não é menos verdade que a paz não se constrói com palcos iluminados, mas com políticas sérias de segurança, justiça social e dignidade humana.
Enquanto as famílias continuam a enterrar os seus mortos e a abandonar as suas terras, a pompa e circunstância do festival SUPA soará, inevitavelmente, como música desafinada em terra de luto.
Esta crónica trás o olhar crítico sobre o paradoxo de celebrar a paz em meio à guerra. Moz24h