A anatomia de uma guerra silenciada e a coragem de quem insiste em dizer a verdade
Por Tiago J.B. Paqueliua
“A dor cala onde a
bala fala; mas a resistência sussurra nos interstícios da violência.”
Desde 2017, Moçambique carrega um dos seus maiores fracassos como Estado moderno: a crise em Cabo Delgado. Com mais de um milhão de deslocados, centenas de aldeias arrasadas e milhares de mortos, o Norte do país tornou-se sinónimo de dor. Mas também de resistência.
O conflito — classificado muitas vezes apenas como “terrorismo islâmico” — é, na verdade, um fenómeno mais profundo. É o resultado de décadas de exclusão, de um Estado ausente ou predador, da corrupção ligada aos grandes projetos de gás e rubis, da opressão institucional e da falência das promessas de independência.
Este texto é uma síntese crítica das contribuições de académicos, jornalistas e ativistas que têm se recusado a ser cúmplices do silêncio. Entre eles: João Feijó, João Mosca, Jaime Macuane, Dom Lisboa, o Centro de Integridade Pública (CIP), MISA Moçambique, Carta de Moçambique, Canalmoz, O País, o Observatório do Meio Rural (OMR), Integrity e, evidentemente, o próprio Moz24h.
O Peso da Dor: Marginalização e Violência
A insurgência em Cabo Delgado não surgiu num vácuo. Como demonstram João Feijó e o OMR, o pano de fundo da violência inclui o abandono socioeconómico da juventude local, a alienação cultural e a profunda frustração com um Estado que só aparece para reprimir ou explorar.
Reportagens de campo e estudos do CIP revelam como o Estado falhou em proteger os cidadãos — mas não em proteger os interesses corporativos das gigantes como a TotalEnergies. As comunidades locais foram desalojadas sem compensação justa, a promessa de empregos não se concretizou, e o resultado foi uma explosão de ressentimento que encontrou na radicalização um canal de expressão.
Enquanto isso, as forças de defesa e segurança têm sido acusadas de cometer abusos graves, incluindo execuções sumárias e tortura. Organizações como a MISA Moçambique têm denunciado a censura sistemática e o desaparecimento de jornalistas que tentam cobrir a guerra — como o caso de Ibrahimo Mbaruco.
A Resistência Invisível: Jornalismo, Ética e Comunidade
Apesar da brutalidade, um arco de resistência ética tem se erguido. São os jornalistas investigativos que desafiam o bloqueio informativo. São os académicos que desmontam a propaganda oficial. São os líderes comunitários e religiosos que acolhem deslocados enquanto o Estado permanece omisso.
Dom Luís Fernando Lisboa, ex-bispo de Pemba, tornou-se símbolo de uma resistência humanista: “não podemos combater o mal com outro mal”, disse numa das suas homilias mais corajosas, denunciando tanto os jihadistas como o silêncio estatal.
João Mosca e Jaime Macuane sublinham que a paz não será possível com soluções militarizadas e securitárias. O que está em jogo é a reconfiguração do pacto social moçambicano: um pacto hoje quebrado por uma elite político-económica que instrumentaliza o Estado para benefício próprio.
A Guerra das Narrativas: Propaganda vs. Verdade
Cabo Delgado tornou-se também um campo de batalha informacional. O discurso oficial tende a reduzir o conflito a uma “ameaça externa”, ignorando as causas internas. A criminalização da crítica e o cerco à imprensa comprometem seriamente o direito dos moçambicanos à verdade.
Iniciativas como o projecto Integrity e as investigações do CIP revelam desvios em fundos humanitários, esquemas de corrupção na contratação de empresas de segurança privada e ausência de transparência nos contratos de exploração.
Por outro lado, jornalistas independentes como os do Moz24h, Carta de Moçambique, Canalmoz e O País têm desafiado esse cerco com reportagens de profundidade e denúncias que custam caro — em ameaças, processos e censura.
Para Onde Vamos?
O que está a acontecer em Cabo Delgado não é apenas uma crise humanitária. É o colapso de um modelo de Estado. Se a resposta continuar a ser apenas militar, o ciclo de violência se perpetuará. Se os jornalistas continuarem a ser silenciados, o país continuará cego. Se os deslocados continuarem a ser tratados como resíduos de um conflito conveniente, a paz será uma miragem.
Mas enquanto houver vozes que se recusam a calar — como a de Feijó, Mosca, Dom Lisboa, e tantas outras —, haverá esperança. Haverá resistência.
A verdadeira reconstrução de Cabo Delgado só será possível se for feita com base na verdade, na justiça e na dignidade humana. Não basta vencer a guerra militar. É preciso ganhar a paz moral.
NOTA: Este texto foi escrito com base em publicações e relatórios do CIP, MISA, OMR, Carta de Moçambique, Canalmoz, O País, e outras plataformas de jornalismo independente em Moçambique.
