Por Marcelo Panguana
Qualquer que seja o livro, o título desempenha um papel importante, porque ele complementa o texto, é uma espécie de janela aberta através da qual se torna possível imaginar os mil cenários possíveis. Como alguém o disse, o título faculta um meio de referir o texto, de o identificar, mas não se esgota nessa função, quanto às relações que estabelece com o texto. Assim acontece com o livro Do Alto Da Colina, título que nos sugere um autor que sentado num lugar privilegiado, neste caso em cima da colina, tudo observa, tudo fixa. Estou convencido que aquele que olha de cima para baixo tem o privilégio de ver tudo, de observar todas as coisas, de se aperceber de todas as verdades, ou se quisermos, de algumas delas, principalmente quando o observador veste a pele de jornalista investigativo e se assume também como escritor, como é o caso de Luís Nhachote.
Conheci o Nhachote antes de conhecer a sua escrita. Nesse tempo em que nesse grande palco que é Moçambique, tudo, ou quase tudo, estava por definir. Nhachote, debutante ainda nessa arte de escrever, procurava nas esquinas onde o verbo e a escrita constituíam a palavra arma, a oportunidade de divulgar os seus textos, isto é, as suas ideias, o seu pensamento, o seu estilo literário. Como ele, nesse tempo, outros debutantes da escrita se insinuavam: falo de um Celso Manguana, responsável do livro Pátria Que o Pariu, um livro enorme que, infelizmente, nessa época, não mereceu a devida atenção dos críticos; falo também do Rui Ligeiro, poeta de mão-cheia, do Sangari Okapi, um poeta que num outro espaço, me referi como sendo alguém que constrói a sua poesia com a mesma delicadeza de um ourives a concertar um relógio suíço; e também, como não deixaria de ser, de Amin Nordine, que se apartou cedo do mundo dos vivos quando a literatura moçambicana esperava muito da sua criatividade. Todos estes se cruzaram com Luís Nhachote nos corredores da Associação dos Escritores Moçambicanos, insolentes no seus versos, irreverentes nas suas falas. Tudo era uma aventura, o jornalismo, a sedução da crónica, a busca de uma poesia original, tudo constituía uma incomensurável procura, mas, na essência, aquilo que o Nhachote almejava profundamente, era o de construir uma nova narrativa nesses tempos em que se buscava um novo discurso, uma nova pátria, para uma nova literatura.
Hoje, ao ler este livro, fiquei com a plena certeza que se existem obras literárias que se apropriaram de momentos significativos da nossa história para os manterem vivos, Do Alto Da Colina é uma dessas obras. Se quisermos fazer a leitura do País nesse período em que este livro foi escrito, podemos nos socorrer às crónicas que aqui constam, na sua rica multiplicidade, na forma como Nhachote traça o perfil das coisas, ou se quisermos, a identidade da sua própria sociedade e deste País chamado Moçambique. Para alcançar este intento, Nhachote, utilizou ferramentas como, por exemplo, a linguagem simples e descontraída, muitas vezes recorrendo ao humor, a ironia, a gozação.
O livro Do Alto Da Colina convoca e nos traz narrativas interventivas e insubmissas, que Luís Nhachote vai rebuscar nos lugares mais diversos. São crónicas onde facilmente se constata que Nhachote recusa-se a ficar sentado em cima do muro, ou se está no muro, está de pé, a escrever coisas como estas”: _“Amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Combatam com todas as forças que tendes a hipocrisia estampada na janela da nação. É chegada a hora de abrirdes os olhos, porque em breve eles vos caçarão dizendo que o melhor dia é amanhã e não hoje”. Fim da citação.
As crónicas de Nhachote trazem consigo a voz de um despertador de consciências, de alguém que pretende chamar a nossa atenção para tudo que nos rodeia. É essa, aliás, a função da escrita nos dias que correm, não é somente denunciar, mas também o de despertar a sociedade, anunciar ao homem o seu lugar e os seus direitos, ajudá-lo a tentar alcançar a felicidade. Dizia, aliás, o escritor peruano Vargas Llosa, recentemente falecido, que a literatura não aluga frases nas feiras, mas ajuda-nos a defendermo-nos da infelicidade. Nesse papel de despertador de consciências encontramos neste livro muitos exemplos. Repare-se, por exemplo, neste excerto: “Eles sempre souberam que a nossa riqueza são os filhos que as nossas mulheres férteis geraram em noites de luar e chuvas torrenciais. Agora sereis dizimados por gostarem de sexo, as vossas terras ficarão vazias nesse dia que se aproxima, se não levardes a sério a prevenção. Eles voltarão com a vacina que guardam nos laboratórios e aplicarão aos doentes mais gordos, e os que restarem da vossa árvore genealógica, serão humilhados como cães famintos.” Fecho a citação. Mas Nhachote é também um vivente que sofre os agradáveis percalços do amor e que o levam a caminhar em direcção ao oásis. Ele poetiza assim: “Olhei para o mar, azul, lindo e disse-lhe, Marília, és muito linda. Ela sorriu. Um vento leve soprou. O seu perfume subiu-me às narinas, e suspirei de alívio. Antes de nos sentarmos nas areias finas, descalçamos e iniciamos uma marcha ao sabor do vento Sul”.
Duas décadas depois de terem sido escritas, estão aqui as crónicas. Cada um de nós vai julgá-las como bem o entender, o que acontecendo vai significar que Do Alto Da Colina foi lido. Seja qual for o nosso veredicto, Luis Nhachote não vai se preocupar, porque, como o disse, “Nunca me assumi plenamente, como escritor, por ser uma disciplina de reclusão comigo mesmo, quando eu amo a liberdade de observar, para de vez em quando, exorcizar, tentando replicar o social”. E nessa tentativa de réplica fala de muitas coisas, e isso compreende-se porque Nhachote cruzou-se ao longo dos tempos com muita gente, e não é por acaso que no livro Do Alto Da Colina encontramos generais, bancários, prostitutas, empresários de sucesso, detentores de xiconhocas, cadetes, e uma reivindicação do seu espaço, o direito à visibilidade, cada um desfilando neste livro como lhe apetece. É com estas personagens que Nhachote inova o seu discurso, utilizando as ferramentas que lhe possibilitam o desenvolvimento da distância entre o narrador e o feitor, e este, o leitor, acaba se identificando plenamente com as fórmulas “Nhachotianas”. O que pretendo dizer é que ele, Nhachote, escreve da mesma maneira como fala. E a sua fala, muitas vezes vestido de algum sarcasmo e ironia, como tive a oportunidade de referir, constitui um dos seus principais méritos.
Podemos dizer que o livro que temos entre as mãos, antes de ser o relato de histórias diversas, é, sobretudo, a exploração da condição humana. E como um dia disse o escritor Baptista Bastos, e cito, “O homem não deve se resignar, se submeter à negligência, porque mesmo no opróbrio e na clausura, um homem pode ser livre. O homem que escreve é um homem livre”. E ditas todas estas palavras, apenas acrescento: com este livro, Nhachote tornou-se mais livre.

