Por Tiago J.B. Paqueliua
I. Introdução: O Ritual do Perdão sem Verdade
Na véspera da celebração dos 50 anos da independência nacional, o Presidente da República de Moçambique, Daniel Francisco Chapo, anunciou publicamente a sua predisposição para o diálogo com os chamados “grupos armados” que operam no norte do país — sem nunca os nomear, quantificar ou tipificar juridicamente. Em alusão comparativa à trajectória da RENAMO, tratada no início como “bandidos armados” e posteriormente “promovida” a força política com representação institucional, Chapo traça uma narrativa aparentemente pacificadora, mas profundamente evasiva. Evita-se, mais uma vez, a responsabilidade criminal. Evita-se, mais uma vez, o rosto das vítimas.
Trata-se de um ritual político recorrente na história moçambicana: o apelo ao desarmamento e à reintegração como se de absolvição automática se tratasse. O chamado DDR — Desarmamento, Desmobilização e Reintegração — tem sido uma espécie de indulgência nacional, cujas falhas sistemáticas apenas se agravam quando se pretende aplicá-lo indistintamente, como agora, a actores de matriz jihadista.
II. Do DDR à Amnésia Histórica: Entre a RENAMO e os Jihadistas
Num contexto histórico em que o país jaze na lógica entre reconciliação e responsabilização criminal pelos crimes de guerra, a proposta de aplicar o modelo de DDR — que o Presidente considera “único e o melhor do planeta terra” — aos grupos terroristas islâmicos que devastaram Cabo Delgado desde 2017 é, no mínimo, preocupante.
Trata-se de um revisionismo ético e jurídico que ignora três aspectos fundamentais:
1. A génese e natureza dos actores: a RENAMO era uma força político-militar de contestação armada interna, com reivindicações políticas, por mais discutíveis que fossem. Os jihadistas são parte de uma rede transnacional violenta, com motivações teocráticas e modus operandi terrorista, com práticas documentadas de decapitações, violação em massa, tráfico humano e destruição de património cultural.
2. A ausência de responsabilização penal: em nenhum dos ciclos de DDR houve um verdadeiro tribunal de reconciliação, nem muito menos justiça restaurativa. Os crimes de guerra cometidos por todas as partes — FRELIMO, RENAMO e os actuais grupos jihadistas — estão a ficar impunes.
3. A vitimização contínua da população civil: cada ciclo de reintegração sem justiça tem sido, de facto, uma revitimização. As vítimas assistem à reinserção dos seus algozes em programas estatais, com subsídios e reinserção social, enquanto elas permanecem esquecidas, mutiladas, empobrecidas e sem voz.
III. A Impunidade como Patologia Estrutural do Estado
Filipe Jacinto Nyusi, em tempos Presidente da República, declarou que conhecia os financiadores e comandantes dos grupos terroristas e prometeu apresentá-los ao público até 25 de Setembro de 2023. Nunca o fez. Não por falta de meios, mas por falta de vontade política — ou, mais grave, porque a própria máquina estatal se enreda numa teia de cumplicidades, chantagens e silêncios.
A proposta de diálogo agora anunciada por Chapo parece ignorar esta contradição: como se pode dialogar com “grupos” que o próprio Estado afirma conhecer, mas nunca identifica?
E como justificar que o mesmo Estado que possui informação sobre os financiadores dos massacres em Palma, Mocímboa da Praia, Macomia ou Quissanga, nunca os levou à barra da justiça?
IV. Ossufo Momade e o Veredicto de um Estado Falhado
A declaração do líder da RENAMO, Ossufo Momade, de que Moçambique é um “Estado falhado” não pode ser tratada como retórica partidária. Pelo contrário, é um diagnóstico cruel e objectivo: 50 anos após a independência, Moçambique continua a ser marcado por ciclos de guerra e “reconciliações” que nunca curam as feridas. As promessas de desenvolvimento, segurança e unidade nacional continuam por cumprir.
E mais grave: a democracia está refém de uma elite político-militar que trata o país como espaço de impunidade rotativa. O DDR sem justiça é apenas o sintoma visível de um sistema que alimenta a violência para depois a perdoar — sem nunca a resolver.
V. Considerações Jurídicas e Éticas: A Justiça que Falta
Do ponto de vista do Direito Internacional Humanitário, os crimes cometidos pelos jihadistas — e também por elementos das forças governamentais e da RENAMO — são classificáveis como crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
O Estatuto de Roma, que Moçambique não ratificou, mas que é referência universal, obriga os Estados a perseguirem criminalmente os perpetradores de tais actos.
Perdoar esses crimes sob a capa de um DDR é um atentado à memória das vítimas e um incentivo à repetição da barbárie. Nenhuma reconciliação autêntica é possível sem verdade, justiça e reparação.
Como alertava Hannah Arendt, “o perdão sem justiça não é reconciliação; é apenas esquecimento imposto”.
VI. Conclusão: A Paz sem Justiça é um Convite à Próxima Guerra
A proposta de aplicar o DDR aos jihadistas, sem qualquer processo de responsabilização pelos crimes cometidos, é uma cedência perigosa. Se a lógica do perdão sem justiça se impuser mais uma vez, então Moçambique não celebrará os próximos 50 anos com dignidade, mas com mais cinzas, mais luto, mais terror.
O país precisa, urgentemente, de romper com o ciclo da amnistia automática. Reconciliar não é esquecer. Integrar não é absolver. Perdoar não é apagar a história. Porque, como ensinou Santo Agostinho, “a esperança tem duas filhas: a indignação e a coragem. A indignação ensina-nos a não aceitar as coisas como estão. A coragem, a mudá-las”.
