Jerry Maquenzi
Os recentes ataques armados no distrito de Chiúre, situado no sul da província de Cabo Delgado, reavivam a preocupação de que o conflito no norte de Moçambique está longe de ser resolvido. Em vez de meras acções isoladas de grupos insurgentes, os ataques em Chiúre devem ser examinados como parte de uma estratégia militar, política e simbólica mais abrangente, na tentativa de redesenhar o cenário da guerra, recrutar novos combatentes e reposicionar o conflito em áreas de valor estratégico e político. A questão que se coloca é: qual é o significado de Chiúre neste contexto estratégico?
- Recrutamento forçado e o alargamento do campo de guerra
Um padrão discernível está surgindo. Em vez de confrontar directamente as forças armadas posicionadas na província nordeste, os insurgentes se deslocaram para áreas menos protegidas com fragilidade social crónica. O distrito de Chiúre, caracterizado pela pobreza, uma população densa e comunidades dispersas, oferece um terreno fértil para o recrutamento forçado, particularmente entre os jovens sem perspectivas. A reduzida presença militar, o afastamento da costa e a fraca penetração do Estado nas áreas mais interiores facilitam a sedução ou coerção de novos combatentes. Possivelmente estamos testemunhando uma nova fase do conflito: o estabelecimento de “reservatórios humanos” para sustentar a frente de combate no nordeste.
- Chiúre como zona-tampão e distracção estratégica
É crucial não ignorar o papel que Chiúre pode estar desempenhando como uma “zona tampão”. A propagação dos ataques para o sul pode servir como uma táctica de distracção, destinada a dividir a atenção e os recursos das forças de defesa, ao mesmo tempo em que aumenta potencialmente a percepção de insegurança perto de projectos económicos estratégicos, como o projecto de gás natural liquefeito (GNL) na Península de Afungi. A proximidade geográfica entre Chiúre e o eixo de ligação ao projecto de GNL (via Macomia e Mueda) levanta suspeitas: poderão os insurgentes estar a tentar estabelecer um corredor de pressão em torno da área de influência dos megaprojectos? Ou pior, uma “ilha de segurança” artificial, onde apenas áreas economicamente significativas permaneceriam protegidas?
- A geografia política dos ataques: quem está seguro e porquê?
As regiões com uma presença marcante da etnia Maconde, tais como Mueda, Nangade e Muidumbe, permanecem praticamente imunes aos ataques (especialmente em Mueda), suscitando indagações acerca dos factores étnicos, políticos e militares envolvidos na protecção dessas áreas. Nesses locais, a força local – composta por milícias organizadas por membros da própria comunidade, geralmente com suporte logístico do Estado e uma remuneração simbólica – exerce um papel fundamental na manutenção da segurança. É notável que Mueda, o berço da elite militar e do poder político moçambicano pós-independência, jamais tenha sido atacado. Tal fato evidencia que o mapa da guerra não é arbitrário: em locais onde o Estado mantém vínculos históricos, redes sociais coesas e interesses políticos directos, há resistência e protecção. Onde o Estado se faz ausente, tanto social como simbolicamente, predomina o vazio.
- Chiúre, novamente? Memória de uma zona vulnerável
Não é a primeira vez que Chiúre está no epicentro dos ataques. Em 2024, houve incursões esporádicas na região, tipicamente com objectivos específicos como saques, intimidação e criação de instabilidade. Esse padrão agora está se repetindo, mas com intensidade e frequência mais alarmantes. O distrito parece servir como uma zona de teste e atrito. Não há ocupação permanente, mas sim ataques rápidos, simbólicos e destrutivos, suficientes para desestabilizar o cotidiano das comunidades e demonstrar, mais uma vez, que o Estado não é omnipresente. Ao atacar áreas historicamente negligenciadas, os insurgentes reforçam sua imagem como uma “força que chega onde o governo não chega”.
- Mensagens codificadas: o que os ataques estão a dizer?
Os ataques em Chiúre são, em última análise, mensagens codificadas. A violência comunica, e neste caso, o que ela diz é alarmante. Diz que o conflito não está circunscrito ao litoral. Diz que não há solução militar duradoura sem solução política e social. Diz que a juventude empobrecida do interior está vulnerável à radicalização e ao recrutamento. Diz que a protecção do projecto de gás natural é mais eficaz que a protecção da população. E diz, sobretudo, que o silêncio do Estado sobre essas novas dinâmicas é parte do problema.
- Para onde vamos?
É preciso repensar a resposta ao conflito. Se o foco continuar apenas nos megaprojectos e nos pontos quentes do litoral, o interior de Cabo Delgado continuará a ser uma ferida aberta, onde a ausência do Estado, a pobreza e a exclusão criam as condições ideais para a reprodução do conflito. A protecção de zonas como Mueda deve servir de modelo: segurança baseada na presença comunitária, ligação simbólica ao Estado e apoio logístico às forças locais.
Mas atenção: não se trata de militarizar todos os distritos. Trata-se de investir em justiça, presença institucional, criação de oportunidades e integração social. A guerra não será vencida com armas apenas. Chiúre é um espelho onde vemos o que negligenciamos, e se não ouvirmos o que a violência está a comunicar, ela voltará, ainda mais forte, ainda mais próxima.
Conclusão:
Chiúre não é apenas mais um distrito atacado. É uma peça-chave na nova geografia da violência em Cabo Delgado. Ignorar isso é correr o risco de repetir os mesmos erros: reagir sem compreender, combater sem prevenir, proteger investimentos antes das pessoas. É hora de parar de ver Chiúre como um caso isolado e começar a entendê-lo como um sintoma de algo maior, e mais perigoso.

