Por Tiago J.B. Paqueliua
Resumo
O presente artigo analisa a situação de segurança em Cabo Delgado, Moçambique, com enfoque nos recentes ataques em aldeias como Mapate e no megaprojeto de gás natural da TotalEnergies em Afungi. A pesquisa combina informação jornalística com análise crítica, identificando um padrão de “apartheid securitário”, no qual a proteção é seletiva e prioriza interesses de multinacionais, enquanto as populações locais permanecem vulneráveis. O confinamento e isolamento do enclave de Afungi agravam dificuldades econômicas para os residentes e empresários locais, evidenciando desigualdade, injustiça e risco contínuo. Conclui-se que a retórica oficial de paz e retorno das comunidades deslocadas não corresponde à realidade vivida.
Palavras-Chave
Cabo Delgado; Afungi; Apartheid securitário; Segurança seletiva; Conflito armado; Multinacionais; Moçambique; Economia local; Desigualdade; Negócios locais.
Introdução
Cabo Delgado continua a ser cenário de conflito armado, deslocamentos forçados e instabilidade social. Apesar de discursos oficiais sobre paz e cooperação internacional, a realidade é marcada por ataques violentos, exclusão das comunidades locais e proteção militar voltada principalmente para enclaves empresariais. Este artigo utiliza uma abordagem académico-jornalística, articulando informação factual de fontes jornalísticas e relatórios internacionais com análise crítica sobre segurança, direitos humanos, desenvolvimento regional e impactos socioeconómicos do confinamento de enclaves como Afungi.
Mapate: violência e deslocamento
Em 26 de agosto de 2025, dois moradores da aldeia Mapate, distrito de Muidumbe, foram decapitados por insurgentes. O jornal Carta de Moçambique (28/08/2025) informa que as vítimas não conseguiram fugir, ao contrário de outros residentes que buscaram refúgio em Mandava.
“A situação não está boa. Primeiro, passaram pelos campos de produção e, depois, soubemos que os terroristas entraram em Mapate, onde mataram duas pessoas. Outras pessoas fugiram para a aldeia de Mandava. Em Mapate, também causaram outros danos”, relatou um residente de Miteda.
A insegurança gerou deslocamentos massivos e suspensão de atividades. Dados da ONU apontam que, em julho de 2025, 29 pessoas morreram e 208 mil foram afetadas pelos ataques.
Afungi: enclave de exclusão e impacto econômico
Na península de Afungi, onde se localiza o megaprojeto de gás natural da TotalEnergies, ergue-se um enclave fortificado, inacessível às comunidades locais, sob vigilância das FDS e militares ruandeses. Populares descrevem a área como um verdadeiro “país dentro do país”, onde a segurança e o desenvolvimento beneficiam apenas trabalhadores e empresas estrangeiras.
“Esses muros não são só de rede tubarão, arame farpado e escorpião, são muros de exclusão. Lá dentro há luz, água, segurança. Aqui fora só temos medo, fome e incerteza”, relatou um residente anónimo.
O confinamento e isolamento do enclave têm causado impactos diretos na economia local:
Empresários de alojamento e alimentação: Muitos contraíram empréstimos para fornecer serviços ao pessoal do projeto. Com a paralisação do acesso à península, esses negócios estão estagnados, e proprietários tentam vender seus estabelecimentos com grande dificuldade.
Taxistas: Antes da criação do enclave, a renda diária média era de mil meticais; hoje, devido à restrição de acesso, é difícil conseguir sequer cem meticais por dia.
Pequenos comerciantes e fornecedores: Depender de contratos ligados a Afungi significa que grande parte da atividade econômica local foi interrompida, afetando famílias inteiras e a subsistência da comunidade.
Além disso, a diferença entre compensações prometidas e efetivamente pagas às populações que perderam suas terras evidencia desigualdade: enquanto a promessa era de 3 milhões de meticais, apenas 250 mil foram pagos.
A pergunta retórica surge naturalmente: os fundos e apoio da União Europeia para o combate ao terrorismo em Cabo Delgado destinam-se apenas à proteção dos megaprojetos ou também às populações locais?
O discurso oficial e a retórica da paz
Em Kigali, o Presidente Daniel Chapo anunciou o memorando sobre o Estatuto das Forças (SOFA) com Paul Kagame, enfatizando o retorno “progressivo” da paz (DW, 28/08/2025). Contudo, o ACSS relatou que, em 2024, 349 pessoas morreram em ataques no norte de Moçambique, evidenciando a disparidade entre a retórica oficial e a realidade.
Análise crítica: apartheid securitário
A lógica militar e de proteção em Cabo Delgado revela um apartheid securitário, no qual a segurança é seletiva e prioriza enclaves corporativos. Enquanto Afungi é protegido e usufrui de infraestrutura, aldeias como Mapate, Muambula e Litandacua permanecem vulneráveis.
O apartheid securitário não se limita à proteção física:
1. Exclusão socioeconómica – Negócios locais e agentes econômicos enfrentam restrições, perda de renda e insolvência.
2. Desigualdade territorial – Comunidades deslocadas ou sem acesso a compensações adequadas são privadas de meios de subsistência.
3. Militarização voltada ao lucro – A presença militar serve à proteção de interesses corporativos e megaprojetos, e não à segurança das populações locais.
Diferenças entre Multinacionais e Populações Locais
A disparidade entre a segurança oferecida às multinacionais e aquela disponível às populações locais é profunda. Nos enclaves corporativos, como Afungi, existe presença militar constante, infraestrutura completa — incluindo eletricidade, água, comunicações e transporte seguro — e acesso a contratos lucrativos. A mobilidade é livre e a estabilidade econômica é visível, com negócios crescendo e compensações financeiras claras.
Em contraste, nas aldeias e comunidades locais como Mapate, Muambula e Litandacua, a proteção é uma mirage, a infraestrutura precária ou inexistente, e a renda depende de agricultura e comércio informal, frequentemente interrompida por deslocamentos e insegurança. Compensações prometidas raramente chegam ou são insuficientes, e a mobilidade é arriscada devido a barreiras e violência. A influência política favorece investimentos estrangeiros em detrimento da população local, reforçando a percepção de que a paz e a segurança são seletivas, voltadas para lucro corporativo, e não para o bem-estar comunitário.
Testemunhos e percepções locais
Um proprietário de restaurante em Afungi afirmou:
“Investi tudo o que tinha para servir os trabalhadores do projeto. Hoje, o negócio está parado e devo aos bancos. Não consigo vender nem o que construí.”
Um taxista relatou:
“Antes ganhávamos mil meticais por dia, hoje às vezes não conseguimos cem. As pessoas têm medo de atravessar as barreiras de segurança.”
Um agricultor deslocado questiona:
“As compensações não chegam nem perto do prometido. Como vamos sobreviver? Para quem é esta segurança afinal?”
Análise sobre Influência Política
A situação em Cabo Delgado está fortemente condicionada por decisões políticas nacionais e regionais. O Governo central, ao priorizar a proteção de enclaves corporativos, estabelece um modelo de segurança que privilegia investidores estrangeiros em detrimento das comunidades locais.
A presença de forças militares estrangeiras, como tropas ruandesas e consultores privados de segurança, revela interesses estratégicos e econômicos que se sobrepõem à proteção das populações. Este alinhamento entre Estado e multinacionais fortalece um poder político assimétrico, no qual decisões de segurança são orientadas por contratos internacionais e lucros, não pelo bem-estar civil.
A lentidão na entrega de compensações e a burocracia no reassentamento das comunidades indicam fragilidades institucionais e favorecem a percepção de injustiça, alimentando ressentimento e potencial instabilidade social.
Análise Internacional da Situação de Cabo Delgado
Cabo Delgado tornou-se foco de atenção internacional devido aos megaprojetos de gás natural e à presença de atores internacionais. A União Europeia, Estados Unidos e organizações internacionais fornecem apoio logístico e financeiro sob a justificativa do combate ao terrorismo. No entanto, esse apoio tende a reforçar a lógica do apartheid securitário, ao concentrar recursos na proteção de instalações estratégicas.
Agências internacionais criticam a falta de integração entre segurança e desenvolvimento socioeconómico. Organizações de direitos humanos destacam que a militarização de enclaves corporativos, embora eficiente na proteção de investimentos, perpetua desigualdade e viola direitos fundamentais da população local.
A situação evidencia um padrão recorrente em contextos africanos de exploração de recursos: segurança e prosperidade para investidores estrangeiros contrastando com vulnerabilidade e deslocamento para comunidades locais. Sem equacionar proteção e inclusão social, a ação internacional corre risco de legitimar práticas discriminatórias e agravar tensões regionais.
Conclusão
Cabo Delgado encontra-se dividido entre áreas protegidas para multinacionais e zonas negligenciadas, onde os residentes enfrentam violência, deslocamentos, pobreza e colapso económico. O confinamento de Afungi agrava a desigualdade e injustiça social. A paz proclamada é parcial e seletiva, reforçando diferenças estruturais e perpetuando insegurança. A influência política e a ação internacional indicam que, sem uma abordagem inclusiva, que combine segurança, desenvolvimento social e justiça económica, a paz permanecerá incompleta e desigual. A questão central permanece: a quem serve a segurança em Cabo Delgado?
Glossário
Apartheid securitário: Estrutura de proteção seletiva que privilegia determinados grupos ou interesses econômicos em detrimento da população local.
Enclave: Área isolada geograficamente, politicamente ou economicamente, com acesso restrito.
FDS: Forças de Defesa e Segurança de Moçambique.
SOFA (Status of Forces Agreement): Memorando que define o estatuto de forças militares estrangeiras em território nacional.
Deslocamento forçado: Migração involuntária de pessoas devido a conflitos, violência ou pressão econômica.
Epílogo
As denúncias de Mapate e Afungi ilustram a contradição entre discurso oficial e realidade local. Cabo Delgado está a ser redefinido por muros físicos e simbólicos: um lado beneficia de segurança, infraestrutura e prosperidade, enquanto o outro sofre abandono, deslocamento, insegurança e colapso económico. Sem uma abordagem inclusiva, que combine segurança, desenvolvimento social e justiça económica, a paz permanecerá incompleta e desigual.
Referências
1. Carta de Moçambique. (28/08/2025). Terroristas decapitam duas pessoas em Mapate, Cabo Delgado.
2. DW. (28/08/2025). Presidente de Moçambique celebra cooperação militar com Ruanda.
3. ONU. (2025). Relatório sobre os ataques em Cabo Delgado – Julho 2025.
4. ACSS – Centro de Estudos Estratégicos de África. (2025). Relatório sobre ataques extremistas no norte de Moçambique, 2024.