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Cabo Delgado: Segurança para as Multinacionais [futuramente] abrangerá as Populações?

Foto: Militares  ruandeses guarnecem o Projeto Total Mozambique LNG em Afungi, província de Cabo Delgado, Moçambique, em 29 de setembro de 2022. Foto de Camille LAFFONT / AFP via Getty Images.

Foto: Militares  ruandeses guarnecem o Projeto Total Mozambique LNG em Afungi, província de Cabo Delgado, Moçambique, em 29 de setembro de 2022. Foto de Camille LAFFONT / AFP via Getty Images.

Por Tiago J.B. Paqueliua
Resumo
O presente artigo analisa a situação de segurança em Cabo Delgado, Moçambique, com enfoque nos recentes ataques em aldeias como Mapate e no megaprojeto de gás natural da TotalEnergies em Afungi. A pesquisa combina informação jornalística com análise crítica, identificando um padrão de “apartheid securitário”, no qual a proteção é seletiva e prioriza interesses de multinacionais, enquanto as populações locais permanecem vulneráveis. O confinamento e isolamento do enclave de Afungi agravam dificuldades econômicas para os residentes e empresários locais, evidenciando desigualdade, injustiça e risco contínuo. Conclui-se que a retórica oficial de paz e retorno das comunidades deslocadas não corresponde à realidade vivida.
Palavras-Chave
Cabo Delgado; Afungi; Apartheid securitário; Segurança seletiva; Conflito armado; Multinacionais; Moçambique; Economia local; Desigualdade; Negócios locais.
Introdução
Cabo Delgado continua a ser cenário de conflito armado, deslocamentos forçados e instabilidade social. Apesar de discursos oficiais sobre paz e cooperação internacional, a realidade é marcada por ataques violentos, exclusão das comunidades locais e proteção militar voltada principalmente para enclaves empresariais. Este artigo utiliza uma abordagem académico-jornalística, articulando informação factual de fontes jornalísticas e relatórios internacionais com análise crítica sobre segurança, direitos humanos, desenvolvimento regional e impactos socioeconómicos do confinamento de enclaves como Afungi.
Mapate: violência e deslocamento
Em 26 de agosto de 2025, dois moradores da aldeia Mapate, distrito de Muidumbe, foram decapitados por insurgentes. O jornal Carta de Moçambique (28/08/2025) informa que as vítimas não conseguiram fugir, ao contrário de outros residentes que buscaram refúgio em Mandava.
⁠“A situação não está boa. Primeiro, passaram pelos campos de produção e, depois, soubemos que os terroristas entraram em Mapate, onde mataram duas pessoas. Outras pessoas fugiram para a aldeia de Mandava. Em Mapate, também causaram outros danos”, relatou um residente de Miteda.
A insegurança gerou deslocamentos massivos e suspensão de atividades. Dados da ONU apontam que, em julho de 2025, 29 pessoas morreram e 208 mil foram afetadas pelos ataques.
Afungi: enclave de exclusão e impacto econômico
Na península de Afungi, onde se localiza o megaprojeto de gás natural da TotalEnergies, ergue-se um enclave fortificado, inacessível às comunidades locais, sob vigilância das FDS e militares ruandeses. Populares descrevem a área como um verdadeiro “país dentro do país”, onde a segurança e o desenvolvimento beneficiam apenas trabalhadores e empresas estrangeiras.
⁠“Esses muros não são só de rede tubarão, arame farpado e escorpião, são muros de exclusão. Lá dentro há luz, água, segurança. Aqui fora só temos medo, fome e incerteza”, relatou um residente anónimo.
O confinamento e isolamento do enclave têm causado impactos diretos na economia local:
Empresários de alojamento e alimentação: Muitos contraíram empréstimos para fornecer serviços ao pessoal do projeto. Com a paralisação do acesso à península, esses negócios estão estagnados, e proprietários tentam vender seus estabelecimentos com grande dificuldade.
Taxistas: Antes da criação do enclave, a renda diária média era de mil meticais; hoje, devido à restrição de acesso, é difícil conseguir sequer cem meticais por dia.
Pequenos comerciantes e fornecedores: Depender de contratos ligados a Afungi significa que grande parte da atividade econômica local foi interrompida, afetando famílias inteiras e a subsistência da comunidade.
Além disso, a diferença entre compensações prometidas e efetivamente pagas às populações que perderam suas terras evidencia desigualdade: enquanto a promessa era de 3 milhões de meticais, apenas 250 mil foram pagos.
A pergunta retórica surge naturalmente: os fundos e apoio da União Europeia para o combate ao terrorismo em Cabo Delgado destinam-se apenas à proteção dos megaprojetos ou também às populações locais?
O discurso oficial e a retórica da paz
Em Kigali, o Presidente Daniel Chapo anunciou o memorando sobre o Estatuto das Forças (SOFA) com Paul Kagame, enfatizando o retorno “progressivo” da paz (DW, 28/08/2025). Contudo, o ACSS relatou que, em 2024, 349 pessoas morreram em ataques no norte de Moçambique, evidenciando a disparidade entre a retórica oficial e a realidade.
Análise crítica: apartheid securitário
A lógica militar e de proteção em Cabo Delgado revela um apartheid securitário, no qual a segurança é seletiva e prioriza enclaves corporativos. Enquanto Afungi é protegido e usufrui de infraestrutura, aldeias como Mapate, Muambula e Litandacua permanecem vulneráveis.
O apartheid securitário não se limita à proteção física:
1.⁠ ⁠Exclusão socioeconómica – Negócios locais e agentes econômicos enfrentam restrições, perda de renda e insolvência.
2.⁠ ⁠Desigualdade territorial – Comunidades deslocadas ou sem acesso a compensações adequadas são privadas de meios de subsistência.
3.⁠ ⁠Militarização voltada ao lucro – A presença militar serve à proteção de interesses corporativos e megaprojetos, e não à segurança das populações locais.
Diferenças entre Multinacionais e Populações Locais
A disparidade entre a segurança oferecida às multinacionais e aquela disponível às populações locais é profunda. Nos enclaves corporativos, como Afungi, existe presença militar constante, infraestrutura completa — incluindo eletricidade, água, comunicações e transporte seguro — e acesso a contratos lucrativos. A mobilidade é livre e a estabilidade econômica é visível, com negócios crescendo e compensações financeiras claras.
Em contraste, nas aldeias e comunidades locais como Mapate, Muambula e Litandacua, a proteção é uma mirage, a infraestrutura precária ou inexistente, e a renda depende de agricultura e comércio informal, frequentemente interrompida por deslocamentos e insegurança. Compensações prometidas raramente chegam ou são insuficientes, e a mobilidade é arriscada devido a barreiras e violência. A influência política favorece investimentos estrangeiros em detrimento da população local, reforçando a percepção de que a paz e a segurança são seletivas, voltadas para lucro corporativo, e não para o bem-estar comunitário.
Testemunhos e percepções locais
Um proprietário de restaurante em Afungi afirmou:
⁠“Investi tudo o que tinha para servir os trabalhadores do projeto. Hoje, o negócio está parado e devo aos bancos. Não consigo vender nem o que construí.”
Um taxista relatou:
⁠“Antes ganhávamos mil meticais por dia, hoje às vezes não conseguimos cem. As pessoas têm medo de atravessar as barreiras de segurança.”
Um agricultor deslocado questiona:
⁠“As compensações não chegam nem perto do prometido. Como vamos sobreviver? Para quem é esta segurança afinal?”
Análise sobre Influência Política
A situação em Cabo Delgado está fortemente condicionada por decisões políticas nacionais e regionais. O Governo central, ao priorizar a proteção de enclaves corporativos, estabelece um modelo de segurança que privilegia investidores estrangeiros em detrimento das comunidades locais.
A presença de forças militares estrangeiras, como tropas ruandesas e consultores privados de segurança, revela interesses estratégicos e econômicos que se sobrepõem à proteção das populações. Este alinhamento entre Estado e multinacionais fortalece um poder político assimétrico, no qual decisões de segurança são orientadas por contratos internacionais e lucros, não pelo bem-estar civil.
A lentidão na entrega de compensações e a burocracia no reassentamento das comunidades indicam fragilidades institucionais e favorecem a percepção de injustiça, alimentando ressentimento e potencial instabilidade social.
Análise Internacional da Situação de Cabo Delgado
Cabo Delgado tornou-se foco de atenção internacional devido aos megaprojetos de gás natural e à presença de atores internacionais. A União Europeia, Estados Unidos e organizações internacionais fornecem apoio logístico e financeiro sob a justificativa do combate ao terrorismo. No entanto, esse apoio tende a reforçar a lógica do apartheid securitário, ao concentrar recursos na proteção de instalações estratégicas.
Agências internacionais criticam a falta de integração entre segurança e desenvolvimento socioeconómico. Organizações de direitos humanos destacam que a militarização de enclaves corporativos, embora eficiente na proteção de investimentos, perpetua desigualdade e viola direitos fundamentais da população local.
A situação evidencia um padrão recorrente em contextos africanos de exploração de recursos: segurança e prosperidade para investidores estrangeiros contrastando com vulnerabilidade e deslocamento para comunidades locais. Sem equacionar proteção e inclusão social, a ação internacional corre risco de legitimar práticas discriminatórias e agravar tensões regionais.
Conclusão
Cabo Delgado encontra-se dividido entre áreas protegidas para multinacionais e zonas negligenciadas, onde os residentes enfrentam violência, deslocamentos, pobreza e colapso económico. O confinamento de Afungi agrava a desigualdade e injustiça social. A paz proclamada é parcial e seletiva, reforçando diferenças estruturais e perpetuando insegurança. A influência política e a ação internacional indicam que, sem uma abordagem inclusiva, que combine segurança, desenvolvimento social e justiça económica, a paz permanecerá incompleta e desigual. A questão central permanece: a quem serve a segurança em Cabo Delgado?
Glossário
Apartheid securitário: Estrutura de proteção seletiva que privilegia determinados grupos ou interesses econômicos em detrimento da população local.
Enclave: Área isolada geograficamente, politicamente ou economicamente, com acesso restrito.
FDS: Forças de Defesa e Segurança de Moçambique.
SOFA (Status of Forces Agreement): Memorando que define o estatuto de forças militares estrangeiras em território nacional.
Deslocamento forçado: Migração involuntária de pessoas devido a conflitos, violência ou pressão econômica.
Epílogo
As denúncias de Mapate e Afungi ilustram a contradição entre discurso oficial e realidade local. Cabo Delgado está a ser redefinido por muros físicos e simbólicos: um lado beneficia de segurança, infraestrutura e prosperidade, enquanto o outro sofre abandono, deslocamento, insegurança e colapso económico. Sem uma abordagem inclusiva, que combine segurança, desenvolvimento social e justiça económica, a paz permanecerá incompleta e desigual.
Referências
1.⁠ ⁠Carta de Moçambique. (28/08/2025). Terroristas decapitam duas pessoas em Mapate, Cabo Delgado.
2.⁠ ⁠DW. (28/08/2025). Presidente de Moçambique celebra cooperação militar com Ruanda.
3.⁠ ⁠ONU. (2025). Relatório sobre os ataques em Cabo Delgado – Julho 2025.
4.⁠ ⁠ACSS – Centro de Estudos Estratégicos de África. (2025). Relatório sobre ataques extremistas no norte de Moçambique, 2024.

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