Sociedade

CABO DELGADO: AS VIDAS QUE DESAPARECEM NO SILÊNCIO

Foto: Estacio Valoii/Ponte de Unidade

 

Por: Castro Cleiton

Muito se fala sobre Cabo Delgado. Há relatórios, discursos, conferências, promessas e pronunciamentos. Mas a verdade é que poucas pessoas querem tocar a fundo nos grandes problemas que marcam o dia-a-dia da nossa província. Fala-se do conflito armado como se fosse uma estatística ou um acontecimento distante, mas quem vive aqui sabe que não é apenas isso. Aqui as pessoas estão a morrer. Aqui as pessoas desaparecem sem deixar rasto. E, na maior parte das vezes, ninguém explica para onde foram, nem porque nunca mais voltam.

É doloroso assistir a essa realidade e perceber que, muitas vezes, quem fala de fora o faz de forma superficial. Usam palavras bonitas, discursos técnicos, mas sem a experiência de sentir o medo real que se vive em Cabo Delgado. Não conhecem a angústia de viajar pelas estradas da província sem saber o que pode acontecer a qualquer momento. Não sentem o coração apertado quando trabalham nas comunidades, nos centros de acolhimento, entre famílias destruídas pelo medo e pela incerteza. É fácil opinar de Maputo ou do exterior, mas viver este quotidiano é outra coisa, é uma “cena de outro nível”.

Essa distância gera frustração. Frustração porque parece haver uma despreocupação com o que realmente acontece nas nossas comunidades. Frustração porque muitos que se dizem patriotas falam de Cabo Delgado como se fosse apenas mais um tema de debate, enquanto nós carregamos diariamente o peso da insegurança. Frustração porque a dor dos desaparecimentos não encontra resposta em lado nenhum.

Esse é talvez o aspecto mais cruel do que vivemos: os desaparecimentos. Famílias inteiras ficaram sem notícias de parentes há três, quatro anos. Pessoas próximas, vizinhos, colegas e até líderes comunitários simplesmente desapareceram. Nunca mais foram vistos. Nunca mais se soube nada. Como explicar a uma mãe que o seu filho pode nunca regressar? Como aceitar que um avô desapareça e que a sua memória se perca sem direito sequer a um enterro digno?

Recentemente, um velho conhecido, a quem entrevistei várias vezes no exercício do meu trabalho, desapareceu sem deixar rasto. Era o então Delegado Distrital do Conselho Islâmico em Ancuabe. Ninguém explicou nada. Nenhuma autoridade deu uma palavra de consolo ou esclarecimento. Apenas silêncio. Um silêncio que dói tanto quanto a perda em si. Quantos mais terão que desaparecer para que alguém se digne a dar uma resposta?

É certo que muitos gostariam de falar. Muitos querem denunciar, expor, relatar. Mas o medo é real. O medo de desaparecer também. O medo de nunca mais voltar a ver os irmãos, as primas, os avós. O medo que cala vozes e deixa famílias paralisadas na esperança de que um dia alguém regresse. Eu próprio tenho medo. Todos temos. Mas ao mesmo tempo sou um cidadão desta pátria. E como cidadão, jurei lealdade ao meu país. Ser leal significa também não me calar diante da injustiça. Significa dizer, com coragem, que algo está profundamente errado.

As autoridades insistem em afirmar que estão a trabalhar, que estão a combater, que estão a estancar a violência. Mas os desaparecimentos continuam sem explicação. Onde estão as respostas? Onde está a clareza? Quem responde pelo destino de milhares de pessoas que simplesmente se evaporaram da vida das suas famílias? A cada silêncio, aumenta a dor, aumenta a desconfiança, aumenta o abismo entre quem governa e quem sofre.

Cabo Delgado não pode ser reduzido a relatórios e estatísticas. Cabo Delgado é feito de pessoas de carne e osso, de crianças que crescem com medo, de mulheres que carregam traumas, de jovens que não sabem se terão futuro. Aqui, o conflito não é apenas militar; é uma crise humanitária, é um colapso da dignidade humana. E enquanto vidas continuarem a desaparecer sem explicação, não haverá paz verdadeira.

Escrevo estas palavras porque não posso aceitar que o desaparecimento de pessoas se torne uma normalidade invisível. Não posso aceitar que a dor de famílias inteiras seja tratada como detalhe secundário. Não posso aceitar que se fale em patriotismo enquanto se ignora a realidade concreta da província. Ser patriota é enfrentar a verdade, por mais dura que ela seja. Ser patriota é lutar para que cada cidadão tenha o direito de viver em segurança e o direito de não desaparecer no silêncio.

Cabo Delgado precisa de respostas. Precisa de verdade. Precisa de compaixão e de coragem política. Não basta prometer “combater o terrorismo” sem encarar o impacto real que este conflito tem nas pessoas comuns/dos pacatos. Não basta levantar bandeiras em conferências, enquanto as famílias continuam a chorar por aqueles que nunca regressaram.

Eu escrevo porque sinto na pele. Eu escrevo porque carrego no estômago o peso do que se passa todos os dias na minha província. Eu escrevo porque acredito que calar seria ser cúmplice. E não posso. Não devo. Cabo Delgado merece mais do que discursos vazios: merece humanidade, merece justiça, merece respostas. (Moz24h)

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