Por Tiago J.B. Paqueliua
Uma queixa contra intocáveis costuma seguir o mesmo rumo: notifica-se o acusado, ouve-se o acusado, indicia-se o acusado, julga-se o acusado e é ilibado de todos os crimes.
Estamos diante um processo de natureza e complexidade similar ao exposto anteriormente, pois, Bernardino Rafael, que comandou a Polícia da República de Moçambique (PRM) de 2017 a 2025, foi notificado pela Procuradoria-Geral da República (PGR), para na próxima Segunda-Feira, 7 de Julho, prestar declarações no âmbito de uma Queixa-Crime, que visa responsabilizá-lo criminal e civilmente pelos acontecimentos violentos que marcaram os protestos eleitorais dos últimos meses.

A informação foi avançada à Agência Lusa por Walker Dias, activista social e director da Plataforma Decide — uma das organizações subscritoras da denúncia, interposta no passado dia 13 de Março de 2025.
A mesma Queixa-Crime abrange igualmente José Pascoal Ronda, ex-Ministro do Interior, responsabilizando ambos pelas mortes ocorridas durante os protestos que se prolongaram por cinco meses, resultando, segundo o balanço mais recente, em pelo menos 400 vítimas mortais e destruição considerável de património público e privado.
Bernardino Rafael foi exonerado do cargo de Comandante-Geral da PRM a 23 de Janeiro de 2025, encerrando um ciclo de oito anos à frente de uma das instituições centrais na manutenção da ordem pública — uma ordem tantas vezes questionada pela forma como foi imposta, frequentemente à custa de balas reais, cacetetes e intimidação.
A audição de Bernardino Rafael na PGR surge num momento de agudo escrutínio nacional e internacional sobre a actuação das forças de segurança durante o processo eleitoral e pós eleitoral 2024—2025, cujas irregularidades, violência e alegada fraude continuam a motivar manifestações, processos judiciais e apelos ao Tribunal Penal Internacional.
Comentário
Eis, pois, Bernardino Rafael — o fiel executor de ordens que tantas vezes preferiu blindados a boletins de voto, balas a diálogo, porretes a pontes de entendimento. Chamam-no agora à PGR, como se o espectáculo fosse novo, como se as mesmas instituições que o protegeram, alimentaram e instruíram para silenciar a rua fossem agora autênticas cortes de justiça imparcial.
Ironia maior não se encontra senão na cara lavada com que o Ministro da Defesa, Cristóvão Chume, ensaia discursos patrióticos enquanto supervisiona a máquina de contenção social que o Estado-Partido.
E que dizer do STAE e da CNE, sempre prontos a embalsamar urnas e embalar contagens, enquanto se dobram reverentes perante a batuta do Conselho Constitucional — essa múmia que, entre galhardetes e sentenças, ratifica o que for necessário para que o poder jamais troque de mãos?
Que se conte outra piada a Observação Internacional, que carimba relatórios de «eleições pacíficas» antes de zarpar para cocktail de boas intenções, deixando atrás de si corpos por enterrar e uma sociedade civil eternamente convocada a «fazer barulho» — mas não demasiado.
No meio, sobra a sombra de Filipe Jacinto Nyusi, que de tanto se perpetuar projectou Daniel Francisco Chapo, um «novo» rosto forjado à imagem e semelhança do mestre: ungido não pelas urnas, mas pelas armas da intimidação, do medo e da manipulação numérica. E eis que este partido-Estado, verdadeiro leviatã travestido de república democrática, insiste em segurar-se às poltronas como se a terra fosse sua herança pessoal — terra que entrega, ironicamente, a interesses externos ávidos por gás, rubis e grafite, desde que fechem os olhos ao cheiro de sangue em Cabo Delgado.
E, assim, a PGR ouvirá Bernardino Rafael. Ouvirá. Anotará. Arrolará. E, quem sabe, engavetará. Enquanto isso, o ciclo repete-se — e o povo, ah, o povo, esse continua entre funerais, promessas de reconstrução e migalhas de solidariedade que brotam sempre que o Ocidente decide limpar a consciência, tudo em nome da paz — como se essa macabra paz fosse inimiga da democracia.