Moz24h Blog Economia AFUNGI, O ENCLAVE DO GÁS: QUANDO O DESENVOLVIMENTO EXCLUI PALMA
Economia Sociedade

AFUNGI, O ENCLAVE DO GÁS: QUANDO O DESENVOLVIMENTO EXCLUI PALMA

Foto: Estacio Valoi /Palma/cabo-delgado-

 

Por Jerry Maquenzi

As recentes denúncias (em reportagens dos jornalistas Estácio Valoi e Izidine Achá) das populações de Palma sobre o isolamento da península de Afungi são um retracto vivo das contradições que marcam Cabo Delgado. No coração de uma província devastada pela guerra e pela pobreza, ergue-se o maior projecto de exploração de gás natural da África Subsaariana. Mas, em vez de esperança e prosperidade, o que se instala é a frustração de expectativas, o agravamento de desigualdades e o sentimento de exclusão.

  1. As Evidências do Sofrimento

Como lembra João Feijó, no seu artigo sobre “Regresso das Populações e Reconstrução  do Nordeste de Cabo Delgado  – Da Fragilização do Estado à Emergência  de Uma Totalândia“ a população que sobreviveu aos ataques encontrou casas destruídas, bens saqueados, escolas sem material e serviços de saúde limitados a alguns analgésicos e antibióticos. Em Palma, dos 44 hotéis existentes antes do ataque ao distrito em Abril de 2021, apenas 4 voltaram a abrir, enquanto o sector pesqueiro – vital para os mwanis da costa, foi deixado à própria sorte. Já a agricultura, beneficiando populações do interior alinhadas ao partido no poder, recebeu apoio. O resultado é um cenário de assimetria política, cultural e económica que alimenta sentimentos de invasão e marginalização.

Esses relatos confirmam que o problema é estrutural: não se trata apenas da guerra, mas de escolhas políticas que decidem quem merece apoio e quem pode ser descartado.

  1. Soluções Paliativas que não Atacam as Raízes

Muitos destacam o esforço de organizações locais e internacionais que têm surgido para ajudar a reconstruir vidas em Palma e arredores. Projectos de apoio a pequenos negócios, como a venda de hortícolas, oficinas de costura, carpintarias ou microcrédito para comerciantes, têm garantido alguma renda para famílias que perderam tudo. Além disso, iniciativas de coesão social promovem diálogos comunitários e ajudam a reduzir tensões entre deslocados e residentes.

Porém, esses esforços são paliativos: funcionam como um penso rápido numa ferida aberta. Eles podem aliviar momentaneamente, mas não curam o problema central – a falta de inclusão estrutural das populações nas grandes decisões económicas e políticas que moldam a região. É como tentar apagar um incêndio com um copo de água: necessário, mas insuficiente. Sem políticas públicas sólidas de redistribuição, sem presença do Estado em serviços básicos e sem integração real nos megaprojectos, as comunidades continuarão à margem.

  1. O Risco da Economia de Enclave

O termo “economia de enclave” ajuda a compreender o que acontece em Afungi. Significa que existe uma zona isolada, fortemente protegida, onde se produz riqueza para exportação – no caso, gás natural, sem ligação significativa com a economia local. Os empregos são limitados, os fornecedores são em grande parte externos, e as comunidades vizinhas ficam com pouco ou nenhum benefício.

Em Cabo Delgado, o governo ao permitir que a TotalEnergies cerque Afungi está, de facto, a consolidar esse modelo. Para os moradores de Palma, isso significa ver enormes investimentos e máquinas a operar a poucos quilómetros de suas aldeias, enquanto eles continuam sem escolas equipadas, sem hospitais funcionais e sem estradas transitáveis. Essa contradição é explosiva: o gás que deveria trazer desenvolvimento se transforma em símbolo de exclusão. E uma economia de enclave não é sustentável, ela gera ressentimento, tensão social e um risco permanente de contestação violenta.

  1. Formação Tardia: a contradição do governo

O próprio Governo de Moçambique (através do seu porta-voz) admite que é necessário formar a população local para garantir sua empregabilidade nos megaprojectos de gás. Essa formação seria essencial para que jovens de Palma e Mocímboa da Praia pudessem disputar empregos qualificados, em vez de ver estrangeiros e trabalhadores de outras províncias ocuparem a maioria das vagas.

A questão central é: por que esse investimento em formação não começou antes de 2017 ou ao longo dos anos de conflito? Durante anos, jovens foram recrutados por grupos insurgentes justamente porque não viam perspectivas de emprego digno e sentiam-se abandonados pelo Estado. Agora, quando a TotalEnergies equaciona para retomar suas operações, o discurso da formação ganha força, mas já é tarde para muitos.

Essa demora revela uma contradição política: o governo sempre soube da necessidade de preparar a população, mas preferiu adiar, priorizando os ganhos imediatos da parceria com a multinacional em vez do futuro da juventude local. Essa negligência tem custos humanos e sociais que não podem ser ignorados.

  1. O Pamoja Tunaweza em Contradição

A TotalEnergies lançou o projecto Pamoja Tunaweza – “Juntos Podemos”, com o objectivo de mostrar que está comprometida com a inclusão social, a reconstrução e a coesão comunitária em Cabo Delgado. Na teoria, seria um exemplo de responsabilidade social corporativa, destinado a aproximar a empresa das populações afectadas pelo conflito.

Mas, na prática, o isolamento de Afungi contradiz totalmente esse discurso. Como pode uma empresa dizer que caminha “junto” das comunidades, se ergue barreiras físicas e simbólicas que separam os residentes de Palma das áreas de exploração? O isolamento mina a confiança, aumenta a sensação de abandono e transforma a retórica do “desenvolvimento partilhado” numa promessa vazia.

Para os cidadãos comuns, a contradição é gritante: enquanto se anunciam programas de inclusão, na realidade o acesso é restringido, os benefícios não chegam e as populações continuam a viver na pobreza. O resultado é um abismo entre as intenções proclamadas e as acções concretas.

  1. O Perigo da Frustração e do Isolamento

A Figura 1 mostra de forma clara o que acontece quando se combinam frustração de expectativas, aumento de desigualdades e cenários de pobreza: cria-se um terreno fértil para instabilidade, revolta e até violência.

É exactamente isso que está em jogo em Palma. As comunidades viram promessas de empregos, melhores serviços e prosperidade com a chegada do projecto de exploração do gás. No entanto, o que receberam foi isolamento, precariedade e marginalização. Quando as expectativas são frustradas de forma tão brusca, o risco de novas revoltas sociais ou de fortalecimento de insurgências aumenta exponencialmente.

 

Fonte: Maquenzi & Feijó (2019)

 

Além disso, Cabo Delgado continua sob ataques armados. Ignorar ou isolar comunidades nesse contexto é perigoso não apenas para os residentes, mas também para o próprio projecto de gás: sem estabilidade social, nenhum investimento é seguro. O isolamento de Afungi é, portanto, uma ameaça tanto para o futuro das populações quanto para o futuro económico do país.

  1. Conclusão

O que as populações de Palma denunciam não é só o isolamento físico de Afungi. É o isolamento simbólico e político de toda uma comunidade que foi sacrificada em nome do gás. O governo, ao privilegiar a TotalEnergies e permitir um modelo de enclave, arrisca transformar o “projecto do século” num símbolo de exclusão e injustiça.

A frustração cresce, as desigualdades aumentam e a pobreza se perpetua. Se nada mudar, Afungi não será lembrado como motor de desenvolvimento, mas como o epicentro de uma nova espiral de revolta. A denúncia de Palma é, portanto, um alerta: sem inclusão, não haverá paz nem prosperidade em Cabo Delgado.

 

 

 

 

Referências

Achá, I. (25.08.2025). População de Palma Denuncia Isolamento de Afungi. In STV Notícias. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OttsFR0U9Gs.

Feijó, J. (2023). Regresso das Populações e Reconstrução  do Nordeste de Cabo Delgado  – Da Fragilização do Estado à Emergência  de Uma Totalândia. In Destaque Rural nº 211. Maputo. Observatório do Meio Rural.

Maquenzi, J. & Feijó, J. (2019). Pobreza, Desigualdades e Conflitos no Norte de Cado Delgado. In Observador Rural nº 76. Maputo. Observatório do Meio Rural.

TotalEnergies. (2022). Pamoja Tunaweza – Uma Iniciativa de Desenvolvimento Socioeconómico Liderada pela Comunidade. Maputo. TotalEnergies E&P Mozambique Área 1, Limitada.

Valoi, E. (14.08.2025). População de Palma quer a TotalEnergies Fora de Afungi. In Moz24h. Disponível em: https://moz24h.co.mz/populacao-de-palma-quer-a-totalenergies-fora-de-afungi/.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Sair da versão mobile