Por Tiago J.B. Paqueliua
Resumo
O presente artigo analisa o caso de Roberto Albino Mito, atual Ministro da Agricultura, Ambiente e Pescas, recentemente denunciado pelo Centro de Integridade Pública (CIP) e pela DW África, em conexão com escândalos de corrupção, contrabando de madeira e contratos públicos fraudulentos. Longe de ser episódio isolado, o caso revela a persistência de uma cultura de intocabilidade ministerial, sustentada pela captura do Estado e pela manipulação das instituições de fiscalização e justiça. A análise articula autores clássicos (Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino, Lutero, Calvino) e contemporâneos (Mbembe, Fanon, Freire, Macuane, Nuvunga, Cistac, Mosca, Feijó), demonstrando que a crise de governança em Moçambique é estrutural, com impactos sociais, políticos, económicos e ambientais. O texto denuncia a corrosão do ideal republicano, a normalização da impunidade e a perpetuação de um modelo de governação predatório, onde a floresta, a economia e a cidadania se tornam vítimas sacrificiais da liturgia do poder.
Palavras-Chave
Intocabilidade ministerial, corrupção estrutural, captura do Estado, impunidade política, necropolítica, governança em Moçambique, escândalo, Roberto Albino Mito,
crise ambiental e social.
Introdução
A política moçambicana vive sob o signo da contradição: proclama-se a ética, mas pratica-se a captura; fala-se de legalidade, mas normaliza-se a impunidade. O caso recente envolvendo o Ministro da Agricultura, Ambiente e Pescas, Roberto Albino Mito, denunciado pelo Centro de Integridade Pública (CIP) e analisado pela DW África, não é apenas um episódio isolado de corrupção ou crime ambiental: é um sintoma de uma patologia sistémica que compromete o próprio ideal de Estado de Direito.
I. O Feitiço que se Virou contra o Feiticeiro
Roberto Albino Mito liderava operações contra os cartéis de contrabando de madeira em Sofala, mas documentos revelam que ele próprio autorizou, quando era diretor do Vale de Zambeze (2024), o abate ilegal de madeira pela empresa Ecofarm Moçambique, Lda. — sem qualquer licença de corte, em violação da Lei n.º 17/2023.
A ironia é grotesca: o guardião da floresta transforma-se no seu algoz. Como diria Frantz Fanon (1961), trata-se da “lógica colonial invertida”, em que o libertador assume a postura de opressor, internalizando práticas predatórias contra o próprio povo.
II. A Nova Novela do Algodão e Oleaginosas
O escândalo não se limita ao abate ilegal de recursos florestais. O Tribunal Administrativo recusou visto a um contrato de 130 milhões de meticais celebrado entre o IAOM e a empresa Future Technology of Mozambique, irregular desde a raiz: empresa recém-criada, sem experiência, com a proposta mais cara, mas “abençoada” por contactos prévios com o ministro.
Aqui ecoa a crítica de Jaime Macuane (2015): a corrupção em Moçambique não é exceção, é norma estrutural da governação, um verdadeiro “mercado político de favores”, onde a função pública se converte em meio de acumulação privada.
III. A Cultura da Intocabilidade
A Procuradoria alegar que “não consegue localizar” o ministro é quase um insulto à inteligência pública. É a encenação perfeita do que Adriano Nuvunga (2020) denuncia como “Estado capturado”: instituições que deviam controlar os governantes estão submetidas a eles, legitimando a impunidade como norma.
Segundo Achille Mbembe (2001), esta prática inscreve-se na “necropolítica”: o poder de decidir quem vive e quem morre, estendido aqui ao plano da justiça — onde uns são sacrificados pela lei e outros permanecem intocáveis, fora do alcance do Direito.
IV. O Olhar dos Clássicos
O dilema ético não é novo. Agostinho de Hipona já advertia que “um Estado sem justiça não passa de uma grande associação de malfeitores”. Tomás de Aquino sustentava que a lei injusta não obriga em consciência, e Martinho Lutero, seguido por João Calvino, denunciava a corrupção clerical como espelho da degradação moral — hoje substituída pela corrupção governamental.
V. Implicações Sociais e Políticas
Na contemporaneidade, Vincent Cheung lembra que a verdade não deve ser sacrificada em nome da conveniência política. Em Moçambique, porém, a verdade é sistematicamente silenciada, como alertava também o malogrado Gilles Cistac: sem debate livre e plural, não há emancipação constitucional possível.
João Feijó tem demonstrado como a exclusão social e a ausência de justiça real alimentam revoltas armadas em Cabo Delgado. João Mosca insiste que a economia moçambicana continua subordinada a elites extrativas que gerem o país como se fosse um negócio privado. Aqui, o caso Roberto Albino Mito não é exceção, mas parte dessa engrenagem predatória.
Já Paulo Freire lembrava que “a opressão desumaniza tanto o oprimido quanto o opressor”. A floresta devastada em Chemba simboliza não apenas a destruição ambiental, mas a degradação moral de um Estado que devora a si próprio.
Conclusão
Eis a tragédia moçambicana: ministros que deveriam ser guardiões da terra e do povo transformam-se em predadores do bem comum. Roberto Albino Mito, denunciado em sucessivos escândalos, continua inabalável, protegido por um cordão invisível de silêncio e cumplicidade.
Que amplitude de estragos espera ainda o Presidente da República para agir?
Ou será que está atado a um cordão sistêmico de impunidade que qualquer presidente deve continuar a respeitar religiosamente, como se fosse dogma intocável da política nacional?
Seja como for, o resultado é sempre o mesmo: a floresta queimada, os cofres públicos saqueados e a cidadania reduzida a mera plateia. O povo, impotente, aplaude ironicamente esta ópera bufa de má governação.
E como diria Fanon, o feitiço virou-se contra o feiticeiro. Mas, em Moçambique, os feiticeiros não caem: eternizam-se no altar do poder, celebrados pela liturgia da impunidade.
Glossário
Captura do Estado — Situação em que instituições públicas são instrumentalizadas para proteger elites políticas e económicas, em detrimento do interesse coletivo.
Intocabilidade ministerial — Privilégio informal que impede ministros e altas figuras políticas de serem responsabilizados judicialmente, mesmo em face de provas documentais de crimes.
Necropolítica — Conceito de Achille Mbembe que descreve o poder de decidir quem deve viver e quem deve morrer; aplicado aqui à seletividade da justiça e à destruição ambiental.
Mercado político de favores — Expressão de Jaime Macuane para descrever o sistema de patronagem e corrupção que rege a governação em Moçambique.
Ópera bufa — Gênero de sátira teatral; no contexto do artigo, metáfora para a encenação trágico-cómica da má governação e da impunidade.
Epílogo
A história de Roberto Albino Mito não é apenas sobre madeira abatida sem licença, contratos inflacionados ou milhões desviados. É, sobretudo, a radiografia de um país em que a justiça se ajoelha diante dos poderosos e em que os cofres públicos servem de caixa privada de elites intocáveis. Moçambique transformou-se num laboratório grotesco de corrupção institucionalizada, onde ministros se eternizam como deuses menores, golpistas de baús alheios, sustentados por uma liturgia de silêncio, cumplicidade e medo.
No fundo, a tragédia é antiga e universal: quando o Estado perde a sua espinha dorsal ética, a República converte-se numa caricatura de si mesma. A floresta queimada em Chemba, o contrato do algodão sem transparência e a Procuradoria “incapaz” de encontrar um ministro que aparece todos os dias na televisão não são apenas absurdos políticos — são insultos à inteligência do cidadão.
Se o feitiço se voltou contra o feiticeiro, como lembrava Fanon, resta perguntar: quando é que o povo deixará de ser plateia e passará a ser protagonista da sua própria história? Porque enquanto isso não acontecer, o espetáculo da impunidade continuará em cartaz — sempre com novos atores, mas com o mesmo guião.
Referências
1. Fanon, F. (1961). Les damnés de la terre. Paris: Maspero.
2. Mbembe, A. (2001). On the Postcolony. Berkeley: University of California Press.
3. Macuane, J. (2015). “Patronagem política e captura do Estado em Moçambique”. IESE Working Paper.
4. Nuvunga, A. (2020). “Estado capturado em Moçambique”. CDD Policy Briefs.
5. Cistac, G. (2013). Constituição, Poder e Sociedade em Moçambique. Maputo: Escolar Editora.
6. Freire, P. (1970). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
7. Feijó, J. (2020). Cabo Delgado: Dinâmicas de Exclusão e Insurgência. Maputo: IESE.
8. Mosca, J. (2019). Economia e Governança em Moçambique. Maputo: Escolar Editora.
9. Agostinho de Hipona. (426 d.C.) A Cidade de Deus.
10. Tomás de Aquino. (1265-1274). Summa Theologica.
11. Lutero, M. (1520). A Liberdade Cristã.
12. Calvino, J. (1536). Institutas da Religião Cristã.
13. Cheung, V. (2005). The Reformed Faith. Boston: Reformed Apologetics Press.