Por Tiago J.B. Paqueliua
“Começou a campanha de vacinação contra a pólio (8 a 12 de Julho). Diga sim à vacinação da sua criança para um futuro livre da pólio. Cada dose reforça a protecção contra a paralisia infantil.”
Esta mensagem, veiculada insistentemente pelos canais de telefonia móvel sob chancela do Ministério da Saúde (MISAU), teria tudo para ser a fanfarra de uma governação responsável, zelosa pela infância e promotora de saúde pública. Contudo, a realidade teima em desmentir o discurso. É o país do faz-de-conta, da bandeira que tremula sem vento e das campanhas que se realizam sem acontecer.
A presente denúncia visa lançar luz sobre um modus operandi já estruturalmente perverso e normalizado: o uso da infância como cifra estatística para satisfação de relatórios internacionais, enquanto as crianças reais – com nome, rosto, fome e futuro – são esquecidas nos labirintos do desleixo governamental.
Em Moçambique, a infância é mutilada por negligência institucional.

I. O Bairro da Mentira: Mutauanha como Metáfora Nacional
Tomemos como estudo de caso o bairro Mutauanha, na Pequena Cidade, em Nampula. Segundo testemunhos in loco, confirmados por observações comunitárias directas, os brigadistas de vacinação passaram por várias casas uma vez onde vacinaram crianças. Já a segunda visita, em vez de exercerem o sagrado acto de imunização infantil, limitaram-se a colar cartões de vacinação nos portões ou portas, como quem afixa propaganda eleitoral. A vacina? Não foi administrada. Os rostos das crianças? Não foram vistos. O consentimento dos pais? Nem sequer solicitado. Uma verdadeira encenação sanitária ao serviço das estatísticas.
Ora, esta prática não é apenas uma violação ética — é um crime moral. Sim, um crime: pois, ao falsear actos de saúde pública, o Estado abandona a protecção das crianças e torna-se cúmplice do seu sofrimento evitável.
II. Crescimento Atrofiado, Consciência Deformada
Num país onde quase metade das crianças sofre de atraso de crescimento, segundo dados da UNICEF, brincar com campanhas de vacinação não é mera incompetência — é negligência programada. É uma forma de infanticídio por omissão, sofisticado e silencioso, onde as balas são substituídas por carimbos, e a morte é lenta, molecular e invisível.
E tudo isso ocorre enquanto o governo recita, com requinte teatral, slogans sobre “direitos da criança” em tribunas internacionais. A hipocrisia é tamanha que se pode cortar com bisturi.
III. Estatísticas: O Ópio dos Ministérios
Não nos esqueçamos da retórica de Celso Correia, ex-ministro e pai do falecido SUSTENTA e exorcista do bom senso, que anunciou ao mundo que “cada moçambicano tem três refeições por dia.” Sim, três! Bastava ir a cidade de Maputo, capital da República de Moçambique, ver crianças a comer lixo ou a mendigar sobras de comida e a pernoitar nas varandas das ruas dos antros da prostituição como a famosa Rua de Araújo, ou na melhor das hipóteses, apinhados em ruínas abandonadas.
A estatística eleitoral de Gaza, onde o número de eleitores ultrapassa o dos habitantes adultos, é outro exemplo do fetichismo dos números em Moçambique. Mas agora, o vício estatístico do regime alastrou-se ao campo da saúde. A pólio desaparece, não porque a vacina é dada, mas porque o Excel assim diz.
IV. Desumanidade com Assinatura Oficial
A brincar, a brincar, o MISAU deixou de ser “Ministério da Saúde” para ser o “Ministério da Simulação e Autojustificação”. Enquanto a USAID e outras agências internacionais suspendem os seus apoios, exigindo transparência, o governo responde com campanhas fantasmas. Em vez de corrigir, reage com propaganda. Em vez de punir os infractores, premia-os com promoções.
Se isto se passa em Nampula, uma das cidades com maior visibilidade mediática e densidade populacional, o que será de locais como Quiterajo, Ibo ou Quissanga (Cabo Delgado), Lupilichi e Mbuyo (Niassa), Maluera (Tete) ou Liundo (Matutuíne) e demais rincões relegados ao esquecimento?
V. A Pólio é um Perigo. A Falsificação é uma Epidemia.
Ninguém questiona a importância da vacinação. A luta contra a poliomielite é, indiscutivelmente, um dever de todas as nações. Mas fingir que se vacina é o equivalente moderno de distribuir placebo a doentes terminais. É uma vacina contra a esperança.
Portanto, a presente denúncia exige:
1. Auditorias públicas e independentes a todas as campanhas de vacinação recentes;
2. Responsabilização disciplinar e criminal de brigadistas e supervisores que falsificam dados;
3. Revisão e reforma profunda das estruturas de fiscalização do MISAU;
4. Intervenção urgente da Assembleia da República, dos organismos de direitos humanos e dos parceiros internacionais.
VI. Conclusão: A Saúde Não Se Finge
A maior doença do país não é a pólio. É o cinismo institucional, a burocracia desumana e a governação autista, que fala de cima sem ouvir de baixo.
Não se pretende apenas trazer à ribalta uma chamada de atenção, mas um grito ético, um testemunho patriótico e um libelo acusatório, em nome das crianças não vacinadas mas contadas como tal, contra uma elite administrativa que transforma a dor em estatística, e a infância em número.
Se há justiça neste mundo, que esta denúncia ecoe nas instâncias competentes. E se não há, que ecoe ao menos na consciência de quem, um dia, desejará ser digno de ser bem governado tal como de quem desejará governar bem este país.