Por Tiago J.B. Paqueliua
I. Introdução: O País Refém das Suas Próprias Riquezas
Há na história de Moçambique uma ironia trágica que se repete com requintes de sofisticação globalizada: cada vez que o subsolo nos oferece uma dádiva, uma multinacional aparece com contrato debaixo do braço e promessa nos lábios. O resultado é invariavelmente o mesmo — riqueza para poucos, exclusão para muitos e um Estado transformado em espectador de luxo no teatro da sua própria soberania.
Como lembrava Gilles Cistac: “Um contrato que subtrai a aplicação da lei nacional em benefício de jurisdições externas é um contrato que fragiliza a própria soberania que pretende proteger.”
A saga de Palma, Afungi e Cabo Delgado, exposta com coragem pelo jornalista Estácio Valoi e confirmada pela disputa jurídica entre a GALP e a Autoridade Tributária moçambicana, é o retrato nu e cru deste ciclo vicioso.
II. A Promessa que se Tornou Muro Separacionista
Quando a Totalenergies assumiu as operações no Rovuma, herdando o espólio da Anadarko Petroleum, muitos acreditaram que a região entraria numa nova era de prosperidade. Mas a geografia da esperança foi rapidamente redesenhada: Afungi deixou de ser porta para o mundo e transformou-se numa fortaleza.
O acesso passou a ser restrito — avião ou barco —, o comércio local murchou, e até os hotéis ficaram às moscas. Os pescadores perderam as águas, os agricultores as terras, e as famílias a paciência.
“Estamos separados”, dizem os moradores. Separados da riqueza que lhes prometeram, separados do direito de existir economicamente, separados até do sonho.
Achille Mbembe descreve este tipo de situação como “a política das cercas”, onde o território é fragmentado e “a mobilidade se torna um privilégio para alguns e um crime para outros”.
Não se trata apenas de má gestão empresarial: é a institucionalização da economia de enclave, uma estratégia tão velha quanto a colonização, mas agora embalada em contratos anglófonos e selada em arbitragens internacionais.
III. O Direito na Corda Bamba
O caso GALP evidencia o segundo pilar desta tragédia: o estrangulamento jurídico-fiscal.
Ao recorrer ao Centro Internacional para a Resolução de Disputas de Investimento (ICSID), a petrolífera portuguesa não está apenas a contestar uma cobrança; está a enviar uma mensagem clara — que os interesses privados podem e devem sobrepor-se à soberania fiscal de um Estado frágil.
Jaime Macuane alertou: “Quando o Estado negocia de uma posição de fraqueza, assina contratos que resolvem o problema imediato mas hipotecam o futuro.”
As lacunas legislativas, a ausência de acordos de dupla tributação estratégicos e a dependência de investimentos externos criam o cenário perfeito para esta chantagem sofisticada.
IV. Filosofia da Exclusão: Quando o Lucro Cala a Justiça
O filósofo diria que a Totalenergies e a GALP não estão apenas a violar leis ou contratos; estão a profanar o pacto social.
Paulo Freire dizia: “A desumanização não é um destino dado, mas o resultado de uma ordem injusta que gera violência nos opressores e nos oprimidos.” Negar às comunidades o acesso à sua própria riqueza é perpetuar essa ordem injusta.
O trabalho deixou de ser um meio de dignidade para ser privilégio concedido sob critérios obscuros; a terra deixou de ser bem comum para ser propriedade funcional de quem a arrenda para o lucro; e a comunidade deixou de ser sujeito para se tornar obstáculo logístico.
Frantz Fanon resumiu esta lógica de Palma: “O colonialismo não se contenta em governar um povo; ele esvazia de conteúdo a cultura, a economia e a dignidade desse povo.”
V. A Sociologia do Desencanto
O que está a acontecer em Palma é a morte lenta de um tecido social.
O comércio local não é apenas uma atividade económica; é espaço de encontro, rede de solidariedade, escola de valores comunitários.
Quando uma multinacional o substitui por “lojas internas” e “serviços exclusivos”, não está só a redistribuir fluxos financeiros; está a redesenhar identidades e amputar pertenças.
Nelson Mandela lembrava: “A liberdade não tem sentido se não inclui a liberdade de viver com dignidade.” Aqui, a dignidade foi substituída por barreiras e passes de acesso.
O resultado é previsível: frustração, ressentimento e — não raras vezes — conflito e vulnerabilidade à radicalização. Martin Luther King Jr. já advertia: “A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo lugar.”
VI. Economia Política da Desapropriação
As perdas não são apenas emocionais ou culturais: são contabilizáveis.
Receitas fiscais não arrecadadas, indemnizações nunca pagas, empregos que vão para estrangeiros, contratos de fornecimento monopolizados… tudo isto corrói a base tributária e agrava a dependência externa.
Especialistas em contratos internacionais sustentam que “a ausência de cláusulas de conteúdo local e de partilha de lucros transforma concessões em instrumentos de saque legalizado”.
Moçambique, ao não transformar contratos de concessão em contratos sociais vinculativos, continua a ser refém de um modelo de exploração do homem pelo homem.
VII. Propostas de Resgate Soberano
Face a este quadro, não basta indignação: é preciso agir com estratégia jurídica e coragem política.
1. Cláusulas obrigatórias nos contratos, sobre pagamento integral de tributos, com penalidades automáticas, avaliação independente das indemnizações, e percentagem mínima de contratação local.
2. Comissão mista permanente constituída por Governo, Comunidades e Empresas, com poder deliberativo.
3. Auditorias públicas anuais obrigatoriamente transparentes sobre pagamentos, reassentamentos e impacto ambiental.
4. Percentagem fixa dos lucros a atribuir ao Fundo de Desenvolvimento Local, para projetos comunitários.
5. Capacitação profissional e inserção obrigatória de jovens locais na cadeia de valor do gás.
VIII. Epílogo
O mar de Palma continua o mesmo — azul profundo, salgado, misterioso — mas as suas águas já não refletem apenas o céu; refletem muros, portões e holofotes. Onde antes havia barcos de pesca, há agora cercas. Onde havia redes lançadas para apanhar peixe, há redes jurídicas lançadas para apanhar lucros.
A água corre, indiferente, como se dissesse: “Tudo isto já vi noutras praias, noutros tempos. Só muda o nome do navio.”
Mas, para quem vive em terra firme, a maré não é de indiferença. É de revolta.
Porque, no fundo, Palma não quer esmolas nem desculpas — quer justiça. E justiça, como a água, só faz sentido quando corre para todos.
💥 PALMA NÃO É TERRITÓRIO DE CAÇA FURTIVA!
Prometeram riqueza, mas trouxeram miséria. O gás sai, o lucro voa, o povo só vê navios e cercas de feudos.
Totalenergies isola, GALP foge ao fisco, o Estado vê e se cala, mas o povo vê e fala.
Se a justiça não vem, que venha a lei.
Palma exige justiça. Soberania não se vende.
Que haja territórios de caça furtiva, há — mas não é Palma!