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TERRORISMO EM CABO DELGADO: O Estado Entre a Negação e a Crueldade — A Urgência de uma Resposta Holística e Humanizada

 

Por Tiago J.B. Paqueliua

A notícia divulgada pela Carta de Moçambique no dia 7 de agosto de 2025, sobre a invasão da aldeia Maputo, distrito de Palma, por insurgentes armados que obrigaram a população a fugir, incendiando casas e saqueando bens, é o mais recente exemplo do avanço avassalador do terrorismo em Cabo Delgado. No dia seguinte, esses mesmos grupos montaram barricadas na Estrada Nacional 380, exigindo pagamentos aos motoristas, numa demonstração clara de controlo territorial e desprezo pela autoridade do Estado.

Foto : Estacio Valoi/Metuge/CD

 

Este cenário é alarmante e coloca em evidência, mais uma vez, a dissonância gritante entre a dura realidade das populações afectadas e a resposta oficial do governo moçambicano. O porta-voz do Governo, Inocêncio Impissa, após a 27ª Sessão do Conselho de Ministros, afirmou que as vítimas do terrorismo “devem reinventar-se, porque o governo desencoraja a mendicância” (Carta, 2025). Esta declaração não só revela uma insensibilidade política chocante, como reflete uma desumanização perigosa que contrasta com o que autores como Achille Mbembe alertam: “a soberania do Estado implica antes de mais, o compromisso com a vida e a dignidade das suas populações” (Mbembe, 2019).

Estado e Responsabilidade: O Contrato Social em Ruínas

Do ponto de vista sociopolítico, esta narrativa oficial é uma tentativa flagrante de transferir para as vítimas a responsabilidade pela sua própria desgraça, numa inversão moral que Jacques Derrida classificaria como um gesto de “violência simbólica” (Derrida, 1997). A Constituição da República de Moçambique estabelece a obrigação do Estado de proteger a vida e os direitos fundamentais, no entanto, o discurso do governo revela uma negação dessa responsabilidade, fragilizando a confiança da população e criando um ambiente propício ao recrudescimento do conflito.

A estigmatização das vítimas reforça a exclusão social e económica, como demonstrado em estudos da ONU (UNDP, 2022) que vinculam a marginalização social ao aumento do recrutamento por grupos armados. A perpetuação desse ciclo faz de Cabo Delgado um terreno fértil para o terrorismo, um fenómeno complexo que requer mais do que ações militares isoladas.

Desenvolvimento Sustentável e Segurança: Lições do Mundo

Economicamente, a ausência de políticas inclusivas e sustentáveis para Cabo Delgado ecoa o que Paul Collier descreveu em “The Bottom Billion” (2007): a pobreza crónica e a falta de oportunidades são motores potentes de conflitos violentos. O discurso oficial que rejeita o que chama “mendicância” sem propor alternativas efectivas condena milhares à vulnerabilidade extrema.

A experiência em regiões como o Nordeste da Nigéria e o Sul das Filipinas demonstra que a combinação de desenvolvimento económico local, educação e integração social reduz a influência de grupos extremistas (World Bank, 2019). Por isso, Moçambique deve apostar em programas integrados que promovam agricultura sustentável, emprego para jovens e reforço das infraestruturas sociais.

Estratégia Multidimensional para a Segurança

Militarmente, as ações pontuais não bastam. O professor David Kilcullen, especialista em contrainsurgência, argumenta que o combate ao terrorismo exige uma abordagem multidimensional que envolva segurança, justiça, reconstrução social e reconciliação (Kilcullen, 2010). O reforço da escolta militar na Estrada Nacional 380 é positivo, mas insuficiente sem políticas que integrem as comunidades locais na solução dos seus próprios problemas.

Garantir o respeito pelos direitos humanos e investir na justiça — com tribunais especializados e céleres — são passos essenciais para restaurar o Estado de direito e diminuir a impunidade, que alimenta a violência.

Comunicação Política e Confiança Social

A retórica oficial fria e desconectada mina a legitimidade do Estado. A comunicação política deve ser empática, transparente e informativa, pois, como sugere Hannah Arendt, o poder do Estado reside na sua capacidade de construir consensos e preservar a esfera pública (Arendt, 1969). A negação da gravidade do conflito apenas alimenta a desconfiança e fragiliza as instituições.

Propostas Concretas e Exequíveis

1.⁠ ⁠Programa Integrado de Desenvolvimento Comunitário: Adaptando modelos do Quénia e Nigéria, implementar projectos agrícolas, formação técnica e microcrédito para famílias deslocadas (UNDP, 2022).

2.⁠ ⁠Forças de Segurança Comunitárias: Inspirar-se nas “vigilâncias comunitárias” da Colômbia, promovendo patrulhamento conjunto e confiança entre Estado e comunidades (Restrepo et al., 2016).

3.⁠ ⁠Reforma Judicial: Implementar tribunais móveis e garantir processos justos para combater a impunidade (World Justice Project, 2021).

4.⁠ ⁠Diálogo e Reconciliação: Criar espaços inclusivos para negociação entre comunidades, líderes tradicionais e dissidentes, à semelhança do processo de Timor-Leste (Kingsbury, 2009).

5.⁠ ⁠Campanha Nacional e Internacional: Mobilizar solidariedade e recursos, articulando-se com agências internacionais para assistência humanitária e monitoramento (UNHCR, 2023).

 

Conclusão

Cabo Delgado não pode continuar a ser o símbolo das falhas do Estado moçambicano: políticas fragmentadas, retórica vazia e ausência de empatia. O tempo para a negação acabou. O Estado deve assumir a sua responsabilidade com urgência, adotando uma estratégia holística e humana que devolva dignidade, segurança e esperança ao seu povo.

A dignidade não é negociável. É tempo de indignar-se, de exigir mudanças e de agir com determinação colectiva. O futuro de Moçambique e da sua democracia depende disso.

Referências

1.⁠ ⁠Arendt, H. (1969). On Violence. Harcourt, Brace & World.

2.⁠ ⁠Carta de Moçambique. (2025, 7 Agosto). Terror em Cabo Delgado: Aldeia Maputo invadida por insurgentes.

3.⁠ ⁠Collier, P. (2007). The Bottom Billion: Why the Poorest Countries are Failing and What Can Be Done About It. Oxford University Press.

4.⁠ ⁠Derrida, J. (1997). Of Hospitality. Stanford University Press.

5.⁠ ⁠Kilcullen, D. (2010). Counterinsurgency. Oxford University Press.

6.⁠ ⁠Kingsbury, D. (2009). Peace Processes and Human Rights. Routledge.

7.⁠ ⁠Mbembe, A. (2019). Necropolitics. Duke University Press.

8.⁠ ⁠Restrepo, P., et al. (2016). Community policing and conflict resolution in Colombia. Journal of Peacebuilding & Development, 11(3), 34-48.

9.⁠ ⁠UNDP. (2022). Human Development Report. United Nations Development Programme.

10.⁠ ⁠UNHCR. (2023). Annual Report on Displacement in Mozambique.

11.⁠ ⁠World Bank. (2019). Preventing Violent Extremism through Development.

12.⁠ ⁠World Justice Project. (2021). Rule of Law Index.

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