Moz24h Blog Cultura Se de Poesia se Sarasse Uma Ferida, eu Sararia Cabo Delgado
Cultura

Se de Poesia se Sarasse Uma Ferida, eu Sararia Cabo Delgado

Tiago J.B. Paqueliua

Tiago J.B. Paqueliua

 

Por Tiago J.B. Paqueliua

Se de poesia se sarasse uma ferida,
eu pegaria um punhado de palavras não corrompidas
e sopraria sobre os campos queimados de Cabo Delgado.
Ergueria versos onde tombaram corpos,
e onde o silêncio é espesso como fumo,
eu plantaria metáforas em forma de abrigo.

Diria aos escombros que são ainda casa,
ao chão rachado que ainda guarda raízes,
à criança sem nome que ainda é promessa.
Se a poesia pudesse,
eu lavaria com sílabas os olhos da mãe
que viu seu filho ser tragado pelo fogo
e depois pelo esquecimento.

Com um poema breve,
desarmaria o fuzil em cada esquina,
faria da mina terrestre uma flor selvagem,
e daria um novo nome ao medo:
resiliência.

Se de poesia se curasse a injustiça,
eu transformaria os discursos falsos
em cinzas varridas pelo vento da verdade.
As cúpulas das multinacionais desabariam
ao peso de um único verso justo.
E os rubis, envergonhados, se esconderiam da ganância
para brilhar apenas nos olhos de quem lavra a terra.

Se a poesia fosse remédio,
eu a colocaria nas mãos do pescador deslocado,
nas panelas vazias das mães refugiadas,
no regaço da avó que ainda canta
para não esquecer.

Mas a poesia não cura, não sozinha.
Ela aponta, denuncia, eterniza.
Ela é o grito que não morre,
o rastro do que fomos e do que ainda podemos ser.

Se de poesia se sarasse uma ferida,
eu sararia Cabo Delgado.
Mas como não basta palavra para deter o aço,
eu deixo este poema como faísca —
e que a justiça seja o fogo.

Porque há dores que só não nos matam porque já nos fizeram poema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Sair da versão mobile