O Silenciamento Midiático em Borquina Fassó e o Pânico das Ditaduras diante da Verdade
Por Tiago J.B. Paqueliua
Resumo
Este ensaio propõe uma análise multidisciplinar sobre o silenciamento da Rádio Ómega em Borquina Fassó, associando o caso às práticas autoritárias que limitam a liberdade de expressão em contextos africanos e transcontinentais. A partir de um diálogo imaginado entre jornalistas africanos, pensadores teopolíticos e académicos de várias disciplinas, o texto constrói uma crítica vigorosa às formas contemporâneas de censura política. Utilizando metáforas sociopoéticas, melodrama e sátira, discute-se a tentativa de dominação da linguagem e o medo das elites militares à diversidade de pensamento. Ao mesmo tempo, propõe-se uma reflexão construtiva sobre os modelos democráticos que abraçaram o contraditório como virtude, e não como ameaça.
Palavras-chave:
Liberdade de expressão; censura; imprensa; Borquina Fassó; Rádio Ómega; autoritarismo; crítica política; jornalismo investigativo; sátira; resistência.
Introdução
Em 30 de julho de 2025, o Conselho Superior de Comunicação de Borquina Fassó determinou a suspensão da Rádio Ómega, um dos meios de comunicação mais ouvidos do país. A motivação? Ter usado a expressão “junta burquinense” ao descrever o governo que ascendeu ao poder por golpe de Estado em 2022. A medida reacende o debate sobre a censura institucional, o medo da crítica e o papel da imprensa na consolidação (ou dissolução) da democracia.
Este ensaio propõe uma abordagem interdisciplinar e dialógica, entre o jornalismo, a filosofia política, a teologia pública e os direitos humanos. Convocamos vozes icónicas africanas e globais, vivas e póstumas, para reconstruir o cenário de repressão que alastra em vários regimes — da África ao Caribe, passando pela Ásia e América Latina.
Evocamos Carlos Cardoso, cuja pena inquietou os senhores do crime em Moçambique; Alice Mabota, cuja coragem civil continua a inspirar legiões de cidadãs insubmissas; Paulo Freire, que ensinou que “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho”; Frantz Fanon, que desnudou a violência simbólica dos colonizados; Achille Mbembe, que denuncia os totalitarismos líquidos e seus novos feudos digitais; Tomás Vieira Mário, pioneiro na defesa do jornalismo independente; Fátima Mimbirre, advogada das liberdades constitucionais; Estácio Dias, vigilante crítico da censura em Guiné-Bissau; Estácio Valoi, repórter moçambicano que documenta o subsolo da corrupção; e Selma Marivate, cuja pena ameaçou tanto que tentaram silenciá-la com veneno.
Neste círculo dialógico, permitimo-nos atravessar fronteiras e evocar contextos igualmente críticos à liberdade de expressão — Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Zimbábwe, Venezuela, Cuba, China e Rússia — onde a repressão à imprensa se tornou política de Estado, e a crítica, um ato de resistência perigosa.
1. A Ditadura do Vernáculo: Quando “Junta” se Torna Crime de Estado
O crime da Rádio Ómega foi nomear aquilo que o próprio governo tem sido: uma junta. “Junta militar” não é uma expressão insultuosa por si, mas uma classificação político-histórica. A semântica, nesse caso, torna-se trincheira do medo. Gilles Cistac advertia que “o Estado de Direito se desfigura quando começa a legislar contra o dicionário”.
Segundo a acusação do CSC, a rádio cometeu “comentários maliciosos”. Esta ambiguidade é característica dos regimes opressores: o critério do que ofende é tão volátil quanto o ego dos seus líderes. Quando a liberdade depende do humor dos generais, a democracia já foi sequestrada.
2. Da Palmatória ao Silêncio: O Estado como Professor Autoritário
Ibrahim Traoré, atual chefe de Estado, tem sido descrito por opositores como um “caçador de bruxas”. Um piloto que ousou reclamar do salário foi confrontado com uma escolha: aceitar o valor ou abandonar o país. Escolheu o exílio. Um médico que criticou as Forças Armadas foi punido com um fuzil e enviado ao front, como se a medicina se praticasse melhor entre balas e cadáveres.
Jaime Macuane, politólogo moçambicano, sintetiza:
“Quando o Estado transforma críticas em crimes e opiniões em traições, então a cidadania se torna um risco — e não um direito.”
3. O Mel da Democracia: Abelhas, Microfones e Diversidade
A metáfora é antiga, mas certeira: o mel mais saboroso provém da mistura de flores distintas. Uma sociedade saudável é como uma colmeia diversa — ruidosa, trabalhadora, plural. A imprensa, tal como as abelhas, zune em todas as direções para produzir alimento crítico. Silenciar vozes é como matar operárias — e esperar colheita.
Quitéria Guirrengane afirma:
“A liberdade de expressão não é luxo. É pão. É ar. É a base de qualquer nação que ainda queira ser chamada povo.”
Alice Mabota advertia:
“A democracia sem liberdade de expressão é como um corpo com o coração arrancado — pode até parecer inteiro, mas está morto por dentro.”
Carlos Cardoso escrevia:
“Só há um verdadeiro inimigo do poder: a verdade. E é por isso que eles a temem tanto.”
4. Modelos Inspiradores: Quando a Liberdade Vence o Medo
A censura não é inevitável. Suécia e Islândia são exemplos de nações que protegem ferozmente a liberdade de imprensa. Portugal, após a Revolução dos Cravos, consagrou a crítica como alma da democracia.
Gana, no contexto africano, destaca-se pelo respeito às liberdades cívicas. Não é coincidência que países mais livres também sejam mais inovadores, justos e sustentáveis. Não é a submissão, mas o diálogo que edifica.
5. A Linguagem Como Arma: Da Bíblia a Hannah Arendt
O medo da palavra é milenar. Herodes temia profetas. Pilatos temia o povo. Hoje, ditadores temem jornalistas.
Desmond Tutu dizia:
“Se você é neutro em situações de injustiça, escolheu o lado do opressor.”
Nietzsche, ele mesmo silenciado por sua mente tempestuosa, afirmava:
“A loucura dos indivíduos é rara; mas nos grupos, partidos e nações, é a regra.”
Achille Mbembe observa que “as novas formas de dominação não se limitam ao corpo físico, mas avançam sobre a linguagem, o imaginário e o sentido da história.”
Paulo Freire ensinava:
“Ensinar exige a corporificação das palavras pelo exemplo.”
Fanon advertia:
“A palavra do oprimido não é só resistência, mas também reconquista do ser.”
Tomás Vieira Mário lembra:
“Uma imprensa livre é mais do que um pilar democrático — é o antídoto contra a tirania.”
Fátima Mimbirre reforça:
“A Constituição só serve à cidadania quando é invocada para protegê-la, não para puni-la.”
Estácio Valoi alerta:
“O medo começa quando a verdade encontra um microfone — por isso é que o poder tenta quebrá-los.”
Conclusão
A suspensão da Rádio Ómega não é apenas um caso isolado de censura — é um alerta. A democracia africana, e a global, está sob ataque de fardas que temem microfones. A resposta deve ser coletiva: mais pluralidade, mais proteção jurídica, mais formação crítica.
Estácio Valoi, que sabe o custo de escrever em solo minado, reforça:
“O jornalismo livre é a última trincheira da dignidade em tempos de tirania.”
Enquanto houver uma só rádio, uma só ideia livre, uma só consciência insubmissa, a liberdade ainda respira. E ela, como as abelhas, sempre encontra um jeito de fazer o mel escorrer — mesmo pelas rachaduras do concreto totalitário.
Epílogo: “A Rádio que Gritava no Deserto”
(Em quatro atos: Melodrama, Sarcasmo, Sátira e Quadro Dramático)
I. Melodrama – Carta da Rádio Ómega ao seu povo:
“Aqui jaz uma rádio silenciada. Não por mentir, mas por dizer demais.
Pedimos desculpas por vos amar com palavras e por confiar que ainda nos podiam ouvir.
Voltaremos, quando o medo baixar o volume da arrogância.”
II. Sarcasmo – Guia Rápido para Ditadores Inseguros:
1. Chame golpe de “transição patriótica”.
2. Crie um Conselho que regule até o silêncio.
3. Expulse jornalistas.
4. Recrute dissidentes para guerras que não vencerá.
5. Censure palavras como se fossem mísseis.
III. Sátira – O Juízo Final das Rádios Silenciadas:
No dia do Juízo, os generais terão de ouvir, em loop eterno, todas as entrevistas que censuraram.
Os microfones virarão trombetas, e os jornalistas dirão:
“Maliciosos são aqueles que têm medo do espelho.”
IV. Quadro Dramático: Os Mártires com Microfone
Entram quatro figuras:
Carlos Cardoso (Moçambique), Estácio Dias (Guiné-Bissau), Estácio Valoi (Moçambique) e Selma Marivate — esta última, sobrevivente do veneno do poder.
Cardoso diz:
“Selma, queriam matar-te sem ruído — porque o veneno é a censura que não deixa rastro.”
Ela responde:
“Mas esqueceram-se que o corpo pode ceder, mas a verdade sobrevive — e encontra sempre novos lábios.”
Valoi estende-lhe um caderno:
“Escreve. Ainda há páginas por preencher. E microfones por ressuscitar.”
Selma abre. Escreve. Vive.
Glossário
Junta: Governo militar ou de facto que tomou o poder por vias não democráticas.
CSC: Conselho Superior de Comunicação — órgão regulador da imprensa em Borquina Fassó.
Censura prévia: Proibição da divulgação de informações antes mesmo da sua publicação.
Colmeia democrática: Metáfora para a sociedade plural e participativa.
Democradura: Regime que se diz democrático, mas age com práticas autoritárias.
Teopolítica: Intersecção entre teologia e política.
Melodrama cívico: Discurso emocional que evoca empatia pública contra a repressão.
Cardosismo: Jornalismo como trincheira da verdade.
Fanonismo: Crítica anticolonial da violência simbólica.
Freirismo: Educação como libertação e consciência crítica.
Mbembismo: Crítica das novas formas de dominação global.
Valoísmo: Jornalismo investigativo corajoso em regimes opacos.
Marivatismo: Perseguição jornalística silenciosa e sofisticada, incluindo tentativas de envenenamento.
Referências Bibliográficas
1. Arendt, H. Origens do Totalitarismo. Companhia das Letras, 2006.
2. Cistac, G. Estado de Direito e Justiça Constitucional em Moçambique. Maputo, 2013.
3. Davis, A. Freedom is a Constant Struggle. Haymarket Books, 2016.
4. King Jr., M. L. Where Do We Go from Here: Chaos or Community? Beacon Press, 1967.
5. Nietzsche, F. Além do Bem e do Mal. Companhia das Letras, 2001.
6. Tutu, D. No Future Without Forgiveness. Image, 2000.
7. Notícia original: “Rádio Ómega suspensa em Borquina Fassó”, Notícias ao Minuto, 2 de Agosto de 2025.
8. Relatórios da Repórteres Sem Fronteiras, 2024 e 2025.
9. Declarações públicas de Quitéria Guirrengane, Jaime Macuane, Estácio Dias e Estácio Valoi.
10. Marivate, S. Relatos e denúncias sobre tentativa de envenenamento, entrevistas e reportagens independentes (2024–2025)