Por Tiago J.B. Paqueliua
Meio século depois de declarar a independência, Moçambique encontra-se num ponto de inflexão histórico. De um lado, permanece viva a todo o custo a narrativa heróica de um povo que, sem quadros nem infraestruturas, ousou inventar um Estado. Do outro, alastra uma realidade de desigualdade obscena, corrupção sistémica e uma juventude cada vez mais descrente no tipo da República que lhe está sendo imposta.
O economista Prakash Ratilal, no seu recente ensaio, raro de frelimistas, faz um diagnóstico na franqueza e na profundidade: Moçambique transformou-se num terreno fértil para elites políticas e económicas que, em lugar de servirem o povo, dele se servem. Sem rodeios, Ratilal afirma que o assalto aos bens públicos é hoje o principal motor de reprodução do poder — uma engrenagem onde a ética revolucionária se dissolveu na moral do saque.
Quando, em 1975, Moçambique ergueu a bandeira da independência, o país contava com apenas dez economistas, 93% de analfabetismo e uma administração sabotada por mais de 200 mil colonos em fuga. Foi preciso improvisar e reinventar: jovens sem formação técnica assumiram ministérios, o Banco de Moçambique nasceu das ruínas do Banco Nacional Ultramarino, Cahora Bassa foi recuperada em duras negociações. A meta era clara: garantir soberania formal, renegando passivos coloniais.
Contudo, a Frelimo — de inspiração marxista-leninista trouxe vícios de uma governação de privilégios, daí que sob Samora Moisés Machel, o país viveu um dos paradoxos mais gritantes: a estratificação entre a classe dominante e dominada surgiu quando criaram-se escolas reservadas aos filhos da elite e outras para os restantes, como acontecia no colonialismo português com escolas separadas para assimilados e indígenas, e igualmente criou novas para ministros e outras elites e lojas do povo para a classe dominada, que via-se reduzida a longas filas, onde muitas vezes não encontrava mais do que três retratos na parede — da esquerda para a direita: Marcelino dos Santos, Samora Machel e Eduardo Mondlane — e prateleiras vazias.
A utopia da igualdade sucumbiu à lógica de casta. E não é por acaso que Prakash Ratilal aponta hoje o dedo à continuidade desse sistema de captura: muitos dos nomes que, na época, ostentavam o rótulo de libertadores, converteram-se em fiadores de um Estado que serve cliques familiares e redes de clientelismo.
O contraste com o presente é gritante. A agricultura, que ainda sustenta dois terços da população, recebe pouco mais de 2% do crédito. Moçambique, potencial celeiro, importa até arroz e hortaliças. Enquanto isso, mais de meio milhão de jovens entram anualmente no mercado de trabalho sem qualquer perspectiva de emprego digno. O sector informal, a emigração clandestina ou a criminalidade tornaram-se as únicas válvulas de escape para uma juventude sem horizonte.
No centro disto está uma corrupção estrutural, organizada como sistema. Dos concursos públicos viciados ao escândalo das dívidas ocultas de 2,2 mil milhões de dólares, tudo converge para a mesma engrenagem: grupos que se apropriam do orçamento, das garantias soberanas e das oportunidades que deveriam ser colectivas. A República, de projecto nacional, tornou-se fundo de maneio de interesses privados.
Não surpreende que Ratilal advirta: “Sem combate sério à corrupção, sem meritocracia e sem instituições fortes, a maldição dos recursos pode afundar ainda mais o país.”
A juventude, marginalizada, paga o preço: milhares sobrevivem de biscates, vendem bens a retalho ou emigram, enquanto uma minoria exibe sinais exteriores de luxo que insultam a dignidade do povo.
A “Visão 2050” propõe linhas de rumo: usar receitas do gás e da mineração para projectos estruturantes, promover emprego, reanimar o sector agrícola. Mas planos não mudam realidades sem uma ruptura ética. É preciso desarticular o sistema de corrupção, reformar o Estado com base em competência, não em fidelidade partidária, e criar um ambiente produtivo que devolva esperança à juventude.
Sem isso, Moçambique arrisca ser mais um país rico que fracassa porque não soube libertar-se dos fantasmas do seu próprio modelo político. O marxismo-leninismo não democratizou o poder; apenas o concentrou em novas mãos. Hoje, o desafio é devolver o Estado ao povo que o sustenta, não às famílias que dele se alimentam.
Cinquenta anos depois, a independência continua inacabada. Prakash Ratilal desafia-nos a ousar uma nova utopia: um contrato social onde governar não seja sinónimo de pilhar, mas de servir.
Talvez esta seja, de facto, a última oportunidade de não deixar a história repetir-se — como farsa ou tragédia.