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FEZES, ESGOTOS E LIXO: Solução Energética Sustentável para Maputo, Beira e Nampula

 

Por Tiago J.B. Paqueliua

Barcelona conseguiu transformar lamas de esgoto em combustível limpo e silencioso para autocarros, num projeto europeu batizado Life Nimbus (Zap.aeiou, 19/08/2025).

Investigadores da Veolia, em parceria com a Universidade Autónoma de Barcelona e a empresa de transportes TMB, refinaram os dejetos de mais de 1,5 milhões de habitantes em biometano — um combustível que emite menos 80% de dióxido de carbono do que o gás natural. Passageiros entraram na linha V3 sem suspeitar que viajavam impulsionados pela força invisível dos excrementos humanos. “Se já aproveitámos os dejetos animais, porque não os nossos?”, questionou uma cidadã, citada pelo Le Monde.

Mas Barcelona não está sozinha. A Suécia há muito que utiliza o biogás obtido de lamas fecais e resíduos orgânicos para abastecer a sua frota pública de autocarros, aquecendo milhares de casas com aquilo que antes era apenas lixo. Na Índia, centenas de comunidades rurais cozinham diariamente graças a biodigestores que transformam fezes humanas e esterco animal em gás de cozinha, reduzindo a dependência de lenha e carvão. No Brasil, cidades como Curitiba e São Paulo já convertem aterros sanitários em centrais energéticas que produzem biometano para veículos pesados, enquanto na Alemanha e na Holanda os resíduos urbanos são tão valiosos que fazem parte da matriz nacional de energia limpa. Até em Kigali, no Ruanda, experiências piloto com biodigestores comunitários mostram que também em África o lixo pode ser transformado em ouro energético.

Realidade moçambicana

Se em Barcelona e noutros países os excrementos viram mobilidade sustentável, nas cidades de Maputo, Beira e Nampula a realidade é outra: as águas negras dos esgotos e as fezes resultantes do fecalismo a céu aberto, como é o caso dos bairros da Munhava e Chipangara, o lixo orgânico decomposto dos grandes mercados municipais como o do Zimpeto, Maquinino e Waresta, e das bocarias lixeiras centrais como a de Hulene, fustigam os munícipes com cheiro nauseabundo e proliferação de doenças. A invisibilidade das soluções institucionais forma um retrato indigno das três maiores urbes da República de Moçambique.

Potencial energético das cidades moçambicanas

De acordo com estimativas baseadas em estudos da FAO, do Banco Mundial e da Agência Internacional de Energia Renovável (IRENA), cada habitante urbano produz em média meio quilo de fezes e quase outro tanto de lixo orgânico por dia, capazes de gerar cerca de 0,03 metros cúbicos de biogás. Isto significa que, em Maputo, com cerca de 1,2 milhão de habitantes urbanos, seria possível produzir diariamente energia suficiente para abastecer quatro mil fogões familiares ou pôr a circular cerca de cento e cinquenta autocarros urbanos. Na Beira, com cerca de setecentos mil habitantes, o potencial rondaria vinte e um mil metros cúbicos de biogás por dia, o que equivale a oitenta toneladas de carvão vegetal poupadas diariamente. Já em Nampula, com uma população urbana próxima de oitocentos mil habitantes, a produção de biogás poderia ultrapassar vinte e quatro mil metros cúbicos por dia, energia capaz de iluminar vinte e cinco mil casas com lâmpadas LED.

Somando as três maiores urbes, o país teria ao alcance cerca de oitenta mil metros cúbicos de biogás por dia, o que corresponde a uma capacidade energética de trezentos a quatrocentos megawatts-hora diários. Para comparação, Barcelona usa o biometano para movimentar dezenas de autocarros urbanos, Estocolmo aquece milhares de casas inteiras durante o inverno rigoroso com gás obtido de esgotos, e São Paulo já injeta biometano de aterro diretamente na rede de transportes pesados. Não é, portanto, uma questão de possibilidade técnica, mas de vontade política e visão estratégica.

Comentário científico e propostas práticas

Ambientalistas, engenheiros, urbanistas e economistas sociais convergem num ponto: os resíduos são energia adormecida. O biometano poderia nascer das fezes humanas de Munhava e Chipangara, Chamanculo, Malanga, Fajardo, Xipamanine, Muhahivire, Mutauanha, substituindo progressivamente o caro e poluente combustível fóssil, ambientalmente nocivo e securitariamente maldito no contexto do terrorismo jihadista em Cabo Delgado.

O lixo orgânico dos mercados e bocarias centrais urbanas poderia racional e sustentavelmente ser convertido em ecobriquetes, alternativa ecológica e económica ao carvão vegetal que devasta florestas e acentua a crise climática.

Para o engenheiro ambiental sueco Lars Pettersson, “não existe resíduo, apenas matéria-prima mal aproveitada”. Já a economista social brasileira Maria Fernanda Tavares defende que “a energia dos resíduos é a chave da inclusão produtiva, porque gera empregos verdes e corta dependência de combustíveis importados”.

Entre as propostas apresentadas por especialistas destacam-se: a criação de cooperativas verdes de recolha de resíduos, que dariam emprego formal a jovens e mulheres nos bairros periféricos; o incentivo à instalação de biodigestores comunitários em mercados e escolas, reduzindo custos energéticos locais; a implementação de parcerias público-privadas com empresas de engenharia ambiental para gerir centrais de biogás; e a concessão de incentivos fiscais para pequenas e médias empresas que invistam em soluções de economia circular.

Segundo o urbanista moçambicano Alfredo Mavale, “transformar fezes e lixo em energia não é utopia: é economia, saúde pública e dignidade social”.

Uma visão política necessária

Para além da inovação técnica, está em causa uma visão política: as autoridades municipais das três maiores metrópoles das zonas Norte, Centro e Sul de Moçambique têm de escolher se querem continuar a enterrar as cidades na sua própria lama fecal ou transformá-las em faróis da economia circular africana. A ciência já mostrou o caminho — tecnologias de biodigestão e compactação de biomassa estão ao alcance. Falta apenas coragem, estratégia e investimento.

Epílogo

Eis o paradoxo: enquanto em Barcelona, Estocolmo ou São Paulo as pessoas viajam sentadas sobre a potência energética dos seus intestinos e do seu lixo, em Maputo, Beira e Nampula, as fezes viajam soltas pelas ruas, disputando espaço com o lixo e a dignidade humana.

Não é a falta de dejetos o problema das cidades — é o excesso de inércia. Talvez um dia, quando os autocarros de Maputo, da Beira e de Nampula se moverem ao ritmo das entranhas dos seus habitantes, possamos finalmente dizer que os excrementos deixaram de ser vergonha pública para se tornarem motor de futuro. Até lá, resta-nos o odor — esse combustível gratuito, abundante e democraticamente partilhado, que, ironicamente, ainda não conseguiu acender sequer uma lâmpada municipal.

Referências Bibliográficas

1.⁠ ⁠Zap.aeiou. (2025). Gestão de resíduos urbanos na Beira: entre o desafio e a oportunidade. Lisboa.

2.⁠ ⁠ONU-Habitat. (2022). Waste to Energy: Turning Sanitation Challenges into Solutions. Nairobi.

3.⁠ ⁠Machel, A. (2023). Economia Circular e Desenvolvimento Sustentável em Moçambique. Maputo: Escolar Editora.

4.⁠ ⁠FAO. (2021). Charcoal Transition in Africa: Sustainable Alternatives for Energy. Roma.

5.⁠ ⁠Patel, R. & Mwangi, J. (2020). Sanitation, Biogas and Social Innovation in East Africa. Nairobi University Press.

6.⁠ ⁠Chimoio, L. & Uamusse, F. (2024). Ecombustíveis e Ecobriquetes: Perspetivas para Sofala. Revista Moçambicana de Ciências Ambientais, 12(3), 45-61.

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