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Estado-Crime, Fluxos Ilícitos e a Desfiguração da Justiça em Moçambique

 

O sistema financeiro como arma de dominação e exclusão

Por Tiago J.B. Paqueliua

Palavras-chave:

Estado-Crime; Fluxos Financeiros Ilícitos; Justiça Capturada; Oligarquização; Moçambique; Criminalidade de Colarinho Branco; Lavagem de Capitais; Neocolonialismo Financeiro; Exclusão Socioeconómica; Impunidade Estrutural.

Sumário Executivo

O presente ensaio polidisciplinar investiga a relação estrutural e simbólica entre a elite dirigente moçambicana, a captura institucional do sistema de justiça e os mecanismos de dominação operados através dos fluxos financeiros ilícitos. Através de uma abordagem que integra ciência política, sociologia do direito, economia crítica e jornalismo investigativo, documenta-se o modo como o sistema financeiro tem sido convertido numa ferramenta de exclusão e repressão sob o disfarce de legalidade. Explora-se a simbiose entre o Estado e redes criminosas transnacionais, expondo a cumplicidade de instituições bancárias, nacionais e estrangeiras, na lavagem de capitais, evasão fiscal e transferência ilícita de recursos públicos para paraísos fiscais. O caso moçambicano é aqui interpretado como manifestação de um fenómeno global: o da financeirização da política e a consequente desfiguração da justiça.

Introdução

“Quando o Estado deixa de exercer o monopólio da justiça e da violência para a protecção do bem comum, torna-se ele próprio um actor do crime.”
— Boaventura de Sousa Santos (2011)

 

A configuração contemporânea do Estado moçambicano, sobretudo a partir das revelações sobre as dívidas ocultas, manifesta traços típicos de um Estado-Crime — um conceito operativo que descreve situações em que o aparelho estatal, em vez de reprimir o crime, é cooptado para a sua reprodução. O colapso do ideal republicano e democrático é aqui substituído por um arranjo de governança baseado no saque dos recursos públicos, repressão política, protecção judicial a actores económicos corruptos e a manutenção de uma economia paralela com epicentro em Maputo, mas com ramificações em Joanesburgo, Lisboa, Dubai e nas Ilhas Maurícias.

Este ensaio tem por objectivo denunciar, com base em evidências documentadas, a instrumentalização do sistema financeiro como instrumento de poder e exclusão, descrevendo como ele serve para concentrar riquezas, proteger criminosos de colarinho branco e perpetuar uma arquitectura de impunidade.

1.⁠ ⁠O Estado-Crime e a Nova Arquitectura do Poder Ilícito

Jean-François Gayraud, criminólogo francês, adverte:

“A linha entre legalidade e criminalidade é deliberadamente dissolvida nos Estados capturados.” (Gayraud, 2014, “État Criminel”)

 

Em Moçambique, essa dissolução ocorre por meio da promiscuidade entre elites políticas e actores económicos. Os crimes de Estado — incluindo contratos lesivos, saque fiscal, captura do aparelho judiciário e repressão de dissidentes — não são desvios pontuais, mas parte integrante do modus operandi governamental.

A criação deliberada de zonas cinzentas na aplicação da lei, aliada à concentração dos meios de repressão nas mãos do partido dominante (FRELIMO), garante a blindagem dos detentores de poder e a criminalização da oposição, da imprensa crítica e de activistas comunitários.

2.⁠ ⁠Fluxos Ilícitos e a Economia Política da Corrupção

De acordo com a Comissão Económica das Nações Unidas para África (UNECA), Moçambique perde anualmente centenas de milhões de dólares em fluxos financeiros ilícitos. Estas perdas não são apenas “vazamentos técnicos” — são sintomas de um arranjo sistémico em que empresas offshore, bancos permissivos e elites políticas funcionam como cúmplices silenciosos de um esquema global de pilhagem.

O escândalo das “dívidas ocultas”, no valor de mais de 2,2 mil milhões de dólares, é apenas o caso mais notório. Mas há centenas de outros contratos, concessões, privatizações e transferências bancárias duvidosas que configuram uma engenharia económica de dominação. As transferências para o Credit Suisse, os intermediários em Abu Dhabi e as holdings nos Emirados Árabes Unidos são indícios claros de um padrão organizado de subtracção de riquezas nacionais.

3.⁠ ⁠O Sistema Financeiro como Arma de Exclusão

Os bancos operam como dispositivos estruturais de exclusão e repressão. Enquanto cooperam com elites políticas para ocultação de fundos e operações off-book, negam crédito produtivo às populações e penalizam microempreendedores com taxas proibitivas.

As fintechs, supostamente instrumentos de inclusão financeira, operam sob vigilância dos interesses estatais e com algoritmos que discriminam bairros periféricos e históricos de militância política. O Banco de Moçambique, por sua vez, regula selectivamente, intervindo com rigidez sobre instituições independentes mas tolerando abusos dos bancos comerciais de capital estrangeiro.

Ao mesmo tempo, a dívida pública ilegítima, contraída sem mandato popular, continua a ser paga com o sacrifício de políticas sociais, salários congelados e impostos regressivos — o que constitui, em termos jurídicos, uma forma de violência institucionalizada contra o povo.

4.⁠ ⁠A Desfiguração da Justiça: Cúmplice e Refém

A Procuradoria-Geral da República, o Conselho Constitucional e o Tribunal Administrativo funcionam mais como mecanismos de controlo político do que como garantias do Estado de Direito. A selectividade da justiça é visível na forma como se aceleram processos contra opositores e se arrastam, ad infinitum, os casos contra figuras ligadas à FRELIMO.

Conforme afirmou o jurista Gilles Cistac, assassinado em 2015:

“O problema não é jurídico, é político: quem controla o direito, controla o poder.” (Cistac, 2014)

A aplicação do direito em Moçambique deixou de ser uma questão técnica para se tornar uma ferramenta de punição simbólica. As decisões judiciais transformam-se em instrumentos de dominação e não de resolução de conflitos sociais. A justiça é produzida para proteger a corrupção, e não para erradicá-la.

Conclusão

A financeirização do poder em Moçambique tem conduzido a uma nova forma de dominação política: uma em que a legalidade é convertida em fachada, e a justiça, em instrumento de legitimação da pilhagem. O Estado-Crime não é uma excepção nem uma anomalia; é o modo actual de governação do país. A guerra contra os pobres e a aliança com o capital criminoso formam os dois pilares deste edifício.

O combate a este estado de coisas exige uma ruptura profunda com os mecanismos institucionais actuais, incluindo reformas radicais na justiça, na banca, na política fiscal e na responsabilização dos crimes financeiros.

Epílogo: Justiça como Utopia e Resistência

Se a justiça hoje está desfigurada, isso não significa que esteja morta. As vozes que se erguem contra este estado de coisas — jornalistas perseguidos, activistas assassinados, comunidades deslocadas, académicos silenciados — são testemunhos vivos de que há ainda esperança.

Como lembrava Frantz Fanon:

“Cada geração deve, em relativa obscuridade, descobrir a sua missão, cumpri-la ou traí-la.”

 

Cabe a esta geração a missão de resgatar o país do jugo financeiro e moral a que foi submetido. O silêncio não é mais uma opção.

Bibliografia

1.⁠ ⁠Boaventura de Sousa Santos (2011). A difícil democracia: reinventar as esquerdas. São Paulo: Boitempo.

2.⁠ ⁠Jean-François Gayraud (2014). État Criminel. Paris: Éditions Odile Jacob.

3.⁠ ⁠Gilles Cistac (2014). Intervenções em Seminários sobre Direito Constitucional, Universidade Eduardo Mondlane.

4.⁠ ⁠UNECA (2020). Tackling Illicit Financial Flows for Sustainable Development in Africa. Addis Ababa.

5.⁠ ⁠Global Financial Integrity (2021). Illicit Financial Flows to and from Developing Countries.

6.⁠ ⁠Transparency International Moçambique (2023). Relatório Anual sobre Corrupção e Justiça em Moçambique.

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