Cultura

Crónica | Ancuabe: entre a festa e o medo

 

Por Quinton Nicuete

Há momentos em que a realidade ultrapassa qualquer discurso oficial. Em Ancuabe, distrito de Cabo Delgado, a população acorda e adormece com o mesmo sentimento: medo. Medo de não voltar para casa, medo de perder a família, medo de ser surpreendido pela violência que se move quase ao alcance da vista da vila-sede.

Nos últimos dias, dezenas de pessoas perderam a vida, casas arderam até ao chão, estruturas de fabrico de nipa foram reduzidas a cinzas e até um campo de futebol, espaço de lazer e de sonhos juvenis, foi vandalizado. Centenas de famílias caminham, sem destino certo, apenas com a esperança de escapar à fúria de homens armados que não hesitam em atacar.

E, mesmo assim, em meio a esta nuvem negra, o governo distrital insiste em manter a festa do aniversário de Ancuabe. É como se o som das bombas e dos tiros pudesse ser abafado pela música e pelos discursos oficiais. Como se a dor de quem foge pudesse ser silenciada por palmas.

No último domingo, por volta das 23h00, homens armados raptaram António Waire, delegado da mesquita África Muslim, em pleno centro da vila, no bairro de Namcapa. Um sequestro em plena sede distrital, diante de todos, sem que houvesse qualquer resistência ou interpelamento. Como é possível que homens entrem de carro, armados, e saiam como se nada fosse? Esta é a pergunta que ecoa em cada esquina.

Tem uma palavra de ordem quase aos que dirigem o distrito “já habituámos”. Mas habituaram o que?

A verdade nua e crua é que as forças de defesa e segurança, por mais esforço que façam, mostram-se vulneráveis. A população sente-se desprotegida. Vive-se entre barricadas improvisadas de coragem e a resignação de quem já não espera milagres.

A teimosia em celebrar o aniversário do distrito, neste contexto, soa a insensibilidade. Não é apenas uma festa: é um retrato cruel de um Estado que, muitas vezes, parece não escutar os gritos silenciosos do seu povo. Ancuabe não precisa de fogos-de-artifício. Precisa de paz. Precisa de segurança. Precisa de dignidade.

Enquanto as autoridades preparam palcos, a população continua a preparar malas improvisadas, sempre pronta a fugir. Entre a festa e o medo, Ancuabe é hoje um espelho partido de Cabo Delgado, um lugar onde a vida e a morte se cruzam, onde a resistência do povo é testada todos os dias e onde a esperança ainda insiste em resistir, mesmo quando parece faltar tudo. Moz24h

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