Por Tiago J.B. Paqueliua
Diz-se que quando a generosidade é maior, até o médico desconfia, tal como em Moçambique, qualquer boa notícia vem embrulhada num laço de desconfiança. É como receber flores de um funcionário público: belo gesto, mas logo se suspeita que as pétalas escondem um espinho administrativo.
O Comando da PRM da cidade de Maputo, capital da República de Moçambique, reserva à Polícia de Trânsito (PT) a fiscalização de veículos, proibindo desta feita aos agentes da Polícia de Proteção (PP) fazê-lo, como tem sido apanágio.
Conforme o Jornal Evidências de 03 de Julho de 2025, tal medida surge em resposta ao Relatório de Fiscalização Ref/n⁰. 15-06/DIP—CM/2025, de 06/06/2025. Assim, o Departamento das Operações da Direção da Ordem e Segurança do Comando da PRM da cidade de Maputo, emitiu para todas as unidades policiais lhe adstritas o ofício n⁰. 01/DOOP —DOSP/PRM —CM/2025 com o assunto único: Proibição de Fiscalização Indevida de Veículos Automóveis na Via Pública.
A notícia em pauta devia merecer aplauso. Mas merece? Talvez. Mas convém olhar para o retrovisor.
Oficio que disciplina a atividade policial na EstradaCamScanner 03-07-2025 04.53
De um lado, o cenário é pitoresco: agentes uniformizados, apitos ao vento, blocos de multas em punho — tudo muito alinhado com o que se entende por Estado organizado. Afinal, quem não deseja estradas seguras, condutores disciplinados, viaturas com travões a funcionar?
No papel, é idílico. Na prática, basta pisar solo de Nampula ou Cabo Delgado para se perceber que cada controlo de estrada é, não raras vezes, uma colecta ambulante.
Enquanto o automobilista aperta o cinto e respira fundo, o agente aperta o discurso: “Documentos? Tudo em ordem? Mas… há sempre um mas.” E o “mas” custa dinheiro. Custa tempo. Custa paciência. Custa dignidade, tanto do que paga como do que cobra. A viatura é revista, não pela falta de extintor ou de colete reflector, mas pela falta de generosidade — essa moeda paralela que lubrifica a engrenagem de uma máquina pública viciada na gorjeta, conhecida em Cabo Delgado e Nampula por “à nossa maneira”.
Seria risível se não fosse trágico. Pois se um cidadão ousa recusar o “lanche”, abre-se uma pequena ópera bufa: multas inventadas, ameaças veladas, a viatura retida num canto poeirento até que a carteira fale. E assim se legitima o imposto informal — uma taxa extra que não vai para o erário, mas engorda bolsos individuais. Ao motorista resta decidir: faz-se de patriota, denuncia e aguenta a retaliação, ou faz-se de pragmático, paga e segue viagem. Entre o herói e o cúmplice, muitos escolhem a sobrevivência — falando como homem que sabe que o cabrito come onde está amarrado.
No meio deste teatro de beira de estrada, o mais triste é que se normalizou o anormal. Discute-se mais o valor “justo” do suborno do que o absurdo de ele existir. Uns sussurram “corrupção”, outros suspiram “é a vida”. E assim, o país, que se quer de leis e Constituição, falha logo no asfalto — esse tribunal improvisado onde o polícia é juiz, cobrador e carrasco, tudo ao mesmo tempo.
Por isso, quando se vir uma notícia a elogiar a actuação policial nas estradas, convém sorrir com reservas. Talvez seja genuíno. Talvez não. Talvez o mesmo agente que hoje recolhe infractores recolha, amanhã, envelopes improvisados.
Enquanto o problema persistir, cada controlo será, para muitos, sinónimo de extorsão legalizada — um peditório compulsivo que o Estado finge não ver, desde que a engrenagem gire, à moda do “falar como homem” e “cabrito come onde está amarrado”, com automobilistas e passageiros como vítimas de mais um outro tipo de terrorismo — o terrorismo de fita bolso, no troço Silva Macua ao controlo de Awasse com 11 postos de Controlo ao longo da via, na província de Cabo Delgado, sob o protagonismo visível dos membros das Forças Armadas de Defesas de Moçambique (FADM) e da Milícia (vulgo força local), agentes da Unidade de Intervenção Rápida (UIR), da Polícia de Proteção (PP) e da Policia de Trânsito (PT.
Pergunte-se aos automobilistas quanto pagam em cada controlo?
Cabo Delgado e Nampula onde a extorção na via pública virou doutrina é também Moçambique. Ou estamos equivocados?
Quando haverá uma circular como a que disciplina os agentes da Lei e Ordem na via Pública ao nível da cidade de Maputo?
Ou não é necessário?
Até quando tolerar que a estrada seja mais um posto de cobrança?
Até quando aceitar que um distintivo seja visto como ameaça e não protecção?
Até quando a cidadania há-de curvar-se, metical a metical, para transitar num país que proclama liberdade de circulação, e acaba de celebrar o jubileu de seus 50 anos?
50 anos de quê?
Num Estado sério, o agente fiscaliza, o motorista respeita, o cofre público agradece. Num Estado refém, o agente cobra, o motorista cala, o bolso privado floresce. Entre um e outro, vai a diferença entre civilização e banditismo uniformizado. Há quem diga que os que extorquem na via pública tem dízimos a dar aos senhores das ordens superiores. Verdade ou mentira, mas parece verdade.
Convém não esquecer: a estrada é, por excelência, o espelho do país. E o que hoje se vê reflectido é um polícia de apito numa mão, a Código da Estrada na outra — mas, no meio, um bolso sempre aberto à luz do dia, a sufocar o cidadão o eleitor.