Por Tiago J.B. Paqueliua
Cabo Delgado agoniza — e quem tem ouvidos, ouça.
Ouça o som abafado dos motores dos tratores que, em pleno século XXI, transportam pessoas como gado entre aldeias devastadas, campos minados e acampamentos improvisados. Homens, mulheres, crianças e anciãos — empilhados em reboques agrícolas — são agora a imagem mais cruel de um Estado que já não tem vergonha de exibir seu fracasso logístico como política pública.
Mas essa não é uma anomalia isolada. É sintoma crônico de uma doença nacional: o desprezo governamental pelas províncias esquecidas, pelas periferias que não rendem votos nem dividendos internacionais. E é nessa lógica necropolítica que se inscreve o caso de Cabo Delgado.
Enquanto Maputo e Pemba falam de “normalização”, as vítimas reais continuam em fuga: sem abrigo, sem justiça, sem paz. Comissões de reintegração visitam as zonas de conflito em caravanas de luxo e regressam com relatórios plastificados — sem poeira, sem sangue, sem verdade. O povo, esse, continua a cantar lamentos como forma de resistência.
Se de canção se curasse uma doença, Cabo Delgado já estaria de alta.
Mas não basta cantar, nem recitar promessas ocas.
O que se vive no norte de Moçambique é uma tragédia prolongada por interesses ocultos, contratos de gás, e acordos de segurança que blindam empresas — não pessoas.
A Ilha do Ibo, exausta de séculos de servidão e décadas de abandono, disse basta. Já não espera pelo Estado, porque o Estado, há muito, deixou de vir. Entre o turismo de elite e a miséria da população local, há um abismo que nem o mar pode explicar. A ilha transformou-se num grito continental, um eco de todos os distritos calados à força.
Os jornalistas que ousam contar essa verdade são perseguidos, as vozes locais são silenciadas por intimidações subtis ou balas perdidas com endereço certo. A institucionalização da mentira se tornou política de Estado.
Mas é preciso denunciar. Nomear. Gritar.
Dizer que transporte em tratores é crime moral.
Que a ocupação militar sem reconstrução civil é colonialismo reciclado.
Que celebrar megaprojetos sem dignidade humana é corrupção de alta patente.
Se de canção se curasse uma doença,
já teríamos transformado batuques em hospitais,
versos em escolas,
e refrões em tribunais de justiça popular.
Mas como o canto não basta,
é hora de transformar o silêncio em arma política,
a dor em mobilização e
a denúncia em ato de libertação.
Cabo Delgado não quer esmola, quer respeito.
Quer justiça, memória, verdade — e, acima de tudo, quer deixar de ser notícia apenas quando há sangue.
Porque enquanto a canção embala, o povo sangra.
E um país que transporta cidadãos em tratores
já abdicou do direito de se chamar República.
