Dois anos depois do violento ataque dos insurgentes ocorrido no dia 24 de Março de 2021 na vila sede de Palma, distrito situado a norte da Província de Cabo Delgado, a área ficou completamente isolada e todos que por lá permaneceram a querer sair por onde fosse possível e seguro. Mas fugir só podia acontecer por via aérea ou marítima, porque pela via terrestre os insurgentes e os militares ainda trocavam fogo intenso. Este cenário contribuiu para a morte de muitas pessoas que perderam a vida em naufrágios ou sem comida e água nas ilhas em que se abrigavam para descansar antes de seguir viagem. Nas matas de Pundanhar, Nangade e Namoto, jazem corpos de idosos e crianças que fugiam com seus pais e filhos em busca de zonas seguras, estas matas nunca mais serão encaradas da mesma maneira.
Por esta razão, durante cerca de 2 anos, a Vila de Palma ficou praticamente abandonada, uma vez que todas as pessoas que se encontravam naquele local procuraram por abrigo na Vila de reassentamento de Quitunda1 e seus arredores, devido ao nível de presença militar neste local. Devido à proximidade com os projectos de gás, esta zona merece especial e reforçada atenção dos militares.
Durante o ataque a Palma, infraestruturas, bens e serviços públicos e privados foram destruídos, a Vila sede de Palma testemunhou anos de trabalho serem destruídos em uma questão de horas. Alguns dias depois do ataque, a Total, principal companhia transnacional a liderar a exploração do gás, decretou Força Maior2 devido à falta de condições para permanecer no local.
Durante o tempo de vigência desta Força Maior as comunidades afectadas pelo projecto do gás têm vivido momentos terríveis. A comunidade de Quitupo, que havia ficado por reassentar, teve que viver dentro da cerca da Total durante 1 ano, com vigilância militar permanente na entrada e saída da aldeia. Os que tencionavam fugir da fome que assolava o distrito encontravam o obstáculo do forte controle militar e da penosa luta para atravessar matas e mares em busca de um local seguro. Se, por um lado, havia fome pela falta de comida, quando esta estivesse disponível nos poucos locais de comércio que resistiram, os preços eram absurdos e completamente fora das capacidades das comunidades locais. As poucas pessoas que conseguiam ter uma porção de terra segura para machamba sofriam com os constantes roubos de mandioca e outras culturas. As frequentes revistas que sofriam nos postos de controle militar atormentaram as comunidades que eram interpelados em cada deslocação sua, e como sempre, as mulheres e raparigas foram as mais lesadas de todo este momento de dor que se viveu em Palma com as frequentes agressões e violações sexuais.
As prisões arbitrárias e ameaças contínuas a jovens comerciantes intensificou-se, as perseguições aos beneficiários das compensações por perda de terras ocupadas pelo projecto de gás não pararam. As autoridades de justiça já foram informadas sobre casos de violação sexual e prisões arbitrárias, que por vezes culminam com o desaparecimento dos indivíduos presos. Pelo menos 2 casos de desaparecimento com provas concretas e testemunhas foram encaminhados para investigação, e estão pendentes desde 2020. Muitos outros existem por denunciar, mas as pessoas afectadas têm medo da polícia e dos militares, e muito pouca esperança no sistema de justiça.
É extremamente lamentável que estes casos não estejam a ser tratados com a celeridade e importância de que necessitam. Durante os últimos 2 anos, SERNIC alegou falta de meios para chegar ao distrito a fim de proceder à investigação no terreno e ouvir os acusados, visto que as vítimas e suas testemunhas já tinham sido ouvidas.
Hoje, estamos diante de um cenário diferente, a Vila de Palma tenta reerguer-se sob a constante ameaça que paira sobre si. Em Palma vive-se um novo normal, diferente do que se vive no pós-pandemia da Covid-19. Foram restabelecidos vários serviços públicos que respondem às necessidades básicas dos cidadãos, como é o caso do Centro de saúde local, serviços de educação através dos Serviços Distritais de Educação Juventude e Tecnologia (SDEJT) e a sua rede de escolas, administração distrital, conservatória, polícia, e outros. Muitos funcionários públicos foram persuadidos e pressionados a regressar apesar de muitos terem manifestado o desconforto em fazê-lo3. Porém, a ameaça da perda de posto de trabalho por não comparência foi uma motivação para o regresso da maioria.4
Apesar disto, os serviços fundamentais que salvaguardam o acesso à justiça continuam em falta. Instituições como o SERNIC, a Procuradoria da República e o Tribunal Judicial do Distrito não se encontram operacionais em Palma, o que continua a colocar em causa o exercício das liberdades e garantias dos direitos fundamentais do cidadão, com destaque para a violação do Direito de Acesso à Justiça, e por isso continuam expostos ao risco de prisões ilegais por parte de Policia da República de Moçambique (PRM), e outros desmandos. Até ao momento da redacção deste texto, o processo de legalização da prisão de um cidadão no distrito de Palma tem sido feito através de arranjos, em que os autos de denúncias são submetidos à Procuradoria distrital de Mueda ou de Pemba, o que inevitavelmente extravasa os prazos que a lei processual penal impõe.5 Considerando os inúmeros casos de violação de direitos humanos que foram reportados durante os últimos 2 anos em Palma, é preocupante que os casos ainda estejam pendentes até hoje e sem resolução à vista.
A vida em Palma não voltará mais a ser a mesma, devido à marca indelével deixada pela violência que houve naquele lugar. Os entes queridos que não sobreviveram jamais serão esquecidos, a dor dos que ficam permanecerá latente em seus corações. A forma como as pessoas passaram a viver, num ambiente de constante medo e desconfiança causado pelos ataques dos insurgentes e pela forte presença militar naquele local, associado a todas as incertezas e injustiças trazidas pelos projectos de gás, contribuem para que um novo normal se viva. Normaliza-se a presença de militares armados a circular pela vila, normaliza-se que projectos de gás mereçam mais protecção que os cidadãos, normalizam-se os postos de controle militar entre as aldeias, normaliza-se a possibilidade de ser confundido com um insurgente e ser preso sem direito a defender-se, porque normaliza-se que o acesso à justiça tenha sido relegado para o fim da lista dos serviços públicos indispensáveis.
E é impossível dissociar este novo normal na Vila de Palma das particularidades dos projectos de gás. Após anunciar a Força Maior em Abril de 2021, o regresso da Total ao projecto de LNG ficou condicionado à retoma de paz e segurança naquele distrito, daí que os esforços do governo e da Total têm sido em provar que a situação está de facto controlada, apesar da tão propalada retoma da paz e estabilidade no norte de Cabo Delgado ser bastante questionável.6
Como podemos normalizar Palma, sem que as questões de violações de direitos humanos estejam resolvidas?
Como podemos normalizar Palma, com processos de compensações por perda de terras ainda por fazer, e considerando ainda que a recepção destas compensações tem exposto as pessoas ao risco de investigações por suspeita de ligações ao terrorismo?
Como podemos normalizar Palma, quando as viagens ainda só são seguras diante de escoltas militares?
Como podemos normalizar Palma, quando são as forças militares estrangeiras que transmitem uma sensação de segurança aos cidadãos Moçambicanos?
Como podemos normalizar Palma, se Ibraimo Mbaruco continua desaparecido?
Normalizar Palma é normalizar a militarização e a hegemonia do capital sobre a vida humana.(JA)