Maputo e Paris, 10 Outubro, 2023 – Uma queixa-crime acaba de ser apresentada em França contra a Total por homicídio involuntário e omissão de socorro a pessoas em perigo, por sobreviventes e famílias das vítimas do devastador ataque de insurgentes no dia 24 de Março de 2021 em Palma, Moçambique [1]. A Justiça Ambiental (JA!) / Amigos da Terra Moçambique e a Amigos da Terra França vinham alertando desde 2019 sobre as responsabilidades da Total no desenvolvimento do seu mega-projecto de gás Mozambique LNG [2], não obstante a situação de segurança e humanitária pré-existente e em curso, e as numerosas violações dos direitos humanos, e esta queixa vem confirmar que a transnacional francesa não tomou as medidas necessárias face aos graves riscos existentes. Enquanto a situação em Cabo Delgado continua dramática, a JA! e a Amigos da Terra França denunciam a intenção da Total de reiniciar as operações até ao final do ano, com o apoio dos bancos franceses Crédit Agricole e Société Générale [3].
Em Junho de 2020, a Amigos da Terra França, Moçambique e Internacional publicaram um relatório de investigação intitulado “Do Eldorado do Gás ao Caos: Quando a França Empurra Moçambique para a Armadilha do Gás” [4], detalhando os riscos e impactos do projecto sobre os direitos humanos, o ambiente e o clima, e a cumplicidade do Estado francês. Na altura, as nossas organizações alertaram: “Numa região assolada por uma escalada de conflitos, o desenvolvimento do gás já está a transformar-se num pesadelo para o povo de Cabo Delgado”.
Na sequência do atentado de insurgentes em Palma, que causou a morte de quase 1200 civis, a Total declarou força maior e suspendeu as operações, em Abril de 2021 [5]. A Total procurava assim libertar-se das suas obrigações contratuais com os seus subcontratados, muitos dos quais empresas locais. Esta situação não só afectou os trabalhadores dos subcontratados da Total, mas sobretudo agravou a situação das populações locais deslocadas pelo projecto de gás, abandonadas sem terra nem meios de subsistência, e com o processo de compensações interrompido, sem certezas a respeito de se ou quando seria retomado.
A queixa-crime apresentada contra a Total confirma a falta de consideração desta transnacional pela população local e pelos seus subcontratados: apesar de ter conhecimento da deterioração da situação de segurança em Cabo Delgado e da probabilidade de um iminente ataque de insurgentes, a empresa foi criticada por não ter sequer adoptado um plano de evacuação. Mais grave ainda, segundo a denúncia, que se baseia principalmente na investigação do jornalista Alex Perry [6], a Total recusou-se a prestar assistência à empresa de segurança DAG, que tinha solicitado combustível para as suas missões de salvamento durante o atentado de Palma. Antes do ataque, a Total tinha pressionado o governo moçambicano para garantir a segurança da zona de gás, o que se reflectiu no facto de, no dia do ataque, haver mais de 800 soldados a proteger as instalações da Total em Afungi, e nenhuma segurança a proteger a vila ou os civis [7].
Anabela Lemos, Directora da JA!, afirma: “A negligência da Total para com os seus subcontratados é mais uma expressão do desprezo criminoso da empresa pelas populações afectadas pelas suas actividades. Não nos podemos esquecer que a maioria das vítimas do ataque de Palma foram as populações locais. Acreditamos que esta acção judicial é importante para desafiar a impunidade destas empresas, e esperamos que alargue as possibilidades para que as comunidades moçambicanas procurem justiça também.”
A queixa refere-se igualmente ao estudo feito pela organização Uprights, encomendado pela Amigos da Terra Moçambique, França e Europa [8], que identificou graves deficiências nas avaliações do impacto da Total sobre os direitos humanos. Em particular, o relatório salienta o facto da empresa não ter levado em conta o conflito armado e não ter abordado o impacto das suas operações nos direitos humanos. Em consequência, os direitos das comunidades locais foram violados.
Juliette Renaud, Coordenadora Sénior de Campanhas de Regulação Corporativa na Amigos da Terra França, afirma: “Desde que entrou no negócio do gás em Moçambique em 2019, a Total tem subestimado consistentemente a gravidade da situação humanitária e de segurança, falhando mesmo no seu dever de ajudar as comunidades locais e os trabalhadores em perigo mortal. Esta impunidade deve acabar e a Total deve ser responsabilizada em tribunal.”
Lorette Philippot, Coordenadora de Campanhas de Financiamento Privado na Amigos da Terra França, afirma: “Hoje, a Total continua a tentar fazer crer aos seus financiadores e investidores que a situação está sob controlo e que as acções levadas a cabo pelo Mozambique LNG estão a ter um impacto positivo nas condições de vida da população. É urgente que o Crédit Agricole e a Société Générale abandonem este mito e deixem de apoiar os projectos dos gigantes do petróleo e do gás em Moçambique.”
Em 27 de setembro, o CEO da Total, Patrick Pouyanné, anunciou aos investidores o seu objectivo de reiniciar o projecto Mozambique LNG até ao final de 2023 [9]. No entanto, no terreno, as questões fundamentais continuam por resolver e a maioria das deficiências identificadas pelo relatório da Uprights ainda não foram abordadas pela Total. Embora se registem melhorias na situação de segurança em Palma e nas imediações do local do projecto, as comunidades ainda não se sentem seguras, as organizações da sociedade civil e os jornalistas ainda não operam livremente, e a insurgência continua activa em outras partes da província.
Este projecto não deve ser reiniciado: a realidade no terreno continua problemática, os contratos de gás são injustos, e os riscos para a população, para o clima e para a economia de Moçambique são extremamente elevados. (Moz24)