Por Josué Bila
Rola pelas redes sociais uma imagem na qual aquele que, em decorrência de ter sido incorporado pela mais alta ignorância teológica, comparou o actual Presidente de Moçambique a Deus, é atado o seu calçado por um bucelário do partido das ideias uníssonas e das práticas securitário-militares em contraposição às ritualizações da democracia liberal. Aos ingênuos das teorias políticas, não estou a dizer que os Estados que se vergam pela democracia liberal não se utilizem das práticas securitário-militares. Apenas afirmo que tais Estados abrem oceanos democráticos para que os cidadãos usem os seus navios políticos e sociais, para as múltiplas práticas de cidadania.
O que me chama à atenção não é o secretário-geral da FRELIMO, o qual, provavelmente, tenha permitido tal serviço clientelista, mas as críticas provindas de muitos segmentos sociais, segundo as quais existe, naquela atitude, o “lambe-botismo”, o “escovismo” (…). Todas essas caricaturas podem até ser irrefutáveis, diante de muitos comportamentos, expostos pelas nossas relações políticas. As relações sociais, enquanto expectativas abstratas ou ações do que os outros esperam de suas contrapartes, são uma grande ponta para a compreensão dos comportamentos das pessoas ou dos indivíduos em várias esferas. Nas relações sociais está definida, simbolicamente, quem é quem no quê, o que pressupõe que os limites nos quais indivíduos e pessoas poderão respeitar ou palmilhar já estão previstos. O que está previsível, nas relações sociais, nem sempre é o ético na igualdade de direitos, mas o previsto nas amarras sociais e nas moralidades centenárias. Consequentemente, o que cada “quem” irá fazer ou não fazer diante do outro “quem”?
Ora, por qual razão Roque Silva possa ter admitido que um compatriota o atasse, e talvez com uma naturalidade tal? No lugar de compatriota, eu colocaria cidadão. Contudo, as nossas relações sociais e políticas, em Moçambique e não só, não são comandadas pelos direitos de cidadania, onde o cidadão goza de primazia constitucional-liberal em contraposição ao compatriota, merecedor dos privilégios e arranjos ideológicos dos políticos de ocasião. Tanto Roque Silva quanto o “compatriota atador” podem até viver faustosamente, importando e comprando, como muitos políticos, ali e acolá, roupas interiores em Dubai, mas, em ambiências de direitos de cidadania, manifestam-se inúteis e são sarrafaçais. Que cada um de nós, nos contextos de profusão de hierarquias verticalmente violentas, faria, caso um amigo de “deus das preventable deseases” portasse calçados desatados?
Este cenário em que Roque Silva tem a provável prerrogativa de ser atado os calçados revela parte de nossa história social, onde os maus-tratos, as violências e as truculências são o nosso mahanhela (maneira de ser), em todos os locais em que nos encontramos. Não podemos esquecer que os nossos cobradores e motoristas de chapas, concedem espaços privilegiados a quem fisicamente se apresenta como de uma “classe superior”, num ponto de vista material, ou porque tal passageiro é conhecido pelos tripulantes ou, ainda, pode ser uma mulher bonita e apresentável comparativamente às outras. Aqui, estou a chamar-vos à atenção sobre as relações sociais, as quais, no nosso contexto, são expostas por comportamentos de concessão de privilégios e não de direitos ou por humilhações e não por dignidade humana. Tanto Roque Silva e o homem que se agacha para atar seus calçados quanto os tripulantes que dão aos passageiros bem-aparentados prerrogativas de se assentar no conforto actuam dentro de uma lógica das relações sociais de uma sociedade de privilégios e hierarquicamente violenta, em contraposição à sociedade de direitos.
Por qual razão penso que somos uma sociedade farisaica? Por que facilmente a cidadania rancorosa está cada vez mais agregando novos membros? A nossa capacidade de expor situações do Poder, como se a FRELIMO fosse o único lugar das humilhações e constrangimentos nos torna presas das nossas contínuas desgraças, pois negamo-nos a pensar a nossa sociedade, de forma trans, inter e multidisplinar. Para muitos de nós, tudo é por causa da FRELIMO. Como tratamos as nossas empregadas domésticas e como elas também nos tratam? Por que as tratamos do jeito como as tratamos e não de um outro jeito, cinturado à dignidade humana? Quais são as relações estabelecidas entre os trabalhadores e empregadores, no sector privado? Por que temos relações de trabalho que são análogas as de escravidão e todos nós fingimos que não percebemos? Quantos pais efectivamente cuidam dos seus filhos? Quais problemas sociais e psicológicos de crianças e, hoje, adultos, cujos direitos deveriam ter sido, primeiro, garantidos pelos pais? Como tratamos as pessoas em situação privilegiada? Não escorrem de nós rios de humilhação contra os mais desfavorecidos? Por que mesmo entre os mais desfavorecidos escorrem sacanizações e humilhações? Será que o comportamento do “compatriota” Roque Silva não é a encarnação da violência “made in Mozambique”, onde humilhar e destratar o Outro é o cartão de visita mais distribuído socialmente? Em toda a minha vida em Maputo, nos transportes públicos, ouvi muitos relatos de empregadas domésticas, segundo as quais patrões variadíssimos – de etnias mais “originárias” de Moçambique até aquelas surgidas por cruzamentos e migrações de asiáticos e europeus – as obrigam e as constrangem a lavar até as roupas interiores, para além de horas de trabalho superiores às exigidas por Lei. Será que precisamos das empregadas aos sábados? Como e onde as empregadas reclamarão dos maus-tratos, se todos naturalizamos que quem estiver numa hierarquia inferior, nas relações de trabalho, não é titular de direitos e de dignidade?
Estou a fazer pesquisas para perceber como as pessoas se servem em festas ou em casamentos. O objectivo se desdobra também em localizar, nas nossas relações sociais, espaços (des)igualitários, a partir das quais posso reflectir o comportamento político no e do Estado. Em que é que a política de servir alimentos nas cerimônias matrimoniais e fúnebres está associada à Política (do Estado) de servir os cidadãos ou de garantir e proteger direitos humanos? Até hoje as malhas sociais já observadas por mim indicam que os privilégios são comportamentos demarcadores das nossas relações. Os privilégios são um contraponto dos direitos. Os nossos pais esperam ser servidos os melhores e maiores pedaços de carne, da mesma forma como os políticos e “toda sociedade” esperam, no contexto de privilégios, que sejam servidos os melhores e maiores pedaços de privilégios sociais. Nas festas, os mais conhecidos pelos gestores, serventes e donos das panelas, alimentam-se farta e faustuosamente do que os convidados que não têm conhecidos naquela ambiência. Ou seja, nas nossas relações sociais são previsíveis os protegidos e os desprotegidos, e não temos mecanismos institucionalizados efectivos, para remediar as injustiças, justamente porque todos articulamos a vida a partir dos (des)privilégios naturalizados. Se houver alguma estupidez nos bestalhões do Poder, ocorre-me pensar que é vindoura da sociedade, onde as relações sociais se dinamizam, de forma violenta. Os bestalhões do Poder apenas são a reprodução e a encarnação dos privilégios nas nossas festas e noutras interações sociais.
Outra maneira de entender os privilégios é por meio da História. Que relações sociais eram dinamizadas nos reinos, chefaturas e comunidades políticas, antes do “ciclone colonial”? E na administração portuguesa? Aliás, não são os mais desprotegidos pelo Estado moçambicano a cara daqueles que representam a perpetuação do “indígena”? Os protegidos não são aqueles que são a perpetuação dos assimilados e brancos? E no Marxismo-Leninismo da FRELIMO, quem eram os protegidos e desprotegidos? O que a emulação socialista tem a ver com as violências políticas e com a distribuição dos privilégios (àqueles que apenas pertenciam ao partido-único e não a todos moçambicanos)? Como a sociedade, hoje, pode usar dos mecanismos institucionais democráticos, para a paulatina redução dos privilégios, abraçando práticas republicanas e democráticas? Como escangalhar a sociedade de privilégios em nome da sociedade de direitos?