Dimanando das brumas, o fantasma de Sam Pa ressurgiu no final do ano passado, em Luanda, para tentar intimidar o general Kopelipa, assombrando a consistência do processo judicial que contra ele (e o general Dino) corre em Angola.
Em 21 de Dezembro, deu entrada na Sala de Comércio, Propriedade Intelectual e Industrial da Comarca de Luanda uma acção de impugnação de cedência de quotas sociais entre vivos e alienação de património de sociedade comercial, tendo o famoso advogado Benja Satula e Carlota Cambenje como mandatários principais.
Parece uma acção normalíssima, mas não é. Os autores da acção são duas empresas com sede nas Ilhas Virgens Britânicas – a Utter International Limited e a Plansmart International Limited –, ambas representadas por Luo Zhigang, um chinês com residência em Luanda. As rés são a IF – Investimentos Financeiros SGPS, SA, de Luanda, e o CIF – China International Fund Lda, também com sede em Luanda.
O objecto do processo é muito simples: a invalidação da entrega ao Serviço Nacional de Recuperação de Activos da Procuradoria-Geral da República (SENRA-PGR) de acções representativas de 60% do capital da CIF Angola e de 100% do património da sociedade.
São tantas e tão interessantes as questões levantadas por esta acção, que é impossível referirmo-nos a todas. Foquemo-nos em apenas dois aspectos.
Em primeiro lugar, o facto de advogados prestigiados assumirem que este tipo de processo judicial é possível, e portanto interporem-no, demonstra aquilo que escrevemos várias vezes acerca da fragilidade das normas legais que sustentaram os “acordos” e “entregas de activos” entre alegados arguidos de corrupção e o SENRA-PGR.
Sempre se referiu que, até à entrada em vigor da Lei da Apropriação Pública, em Maio de 2022, não havia base legal para aquela espécie de negociação que ocorreu, em que activos eram entregues nunca se percebendo em troca de quê.
Lembremo-nos de que, em relação ao CIF, a PGR anunciou em 2020 que, “depois de terem sido constituídos arguidos (…), os generais Hélder Vieira Dias ‘Kopelipa’ e Leopoldino Fragoso do Nascimento ‘Dino’ decidiram entregar ao Estado angolano uma série de empresas e edifícios no valor de mais de mil milhões de dólares”, adiantando que tais activos englobavam propriedade variada da CIF que transitaria “de forma definitiva para a esfera do Estado”, como por exemplo as fábricas de cimento (CIF Cement), de cerveja (CIF Lowenda Cervejas), de montagem de carros (CIF SGS Automóveis) e a CIF Logística.
Agora se vê que a “forma definitiva” não é tão definitiva assim, e tudo por ser declarado inválido por um tribunal, como aliás escrevemos na época.
A isto acresce que as entregas feitas pelos generais não tiveram nenhum aparente efeito benéfico na sua esfera pessoal, como a justiça exigiria, uma vez que foram acusados criminalmente no Verão passado.
Portanto, parece haver aqui uma soma de equívocos, que teria sido evitada se tivesse sido aprovada legislação adequada logo em 2018 e se todos os actos obedecessem à lei e não a voluntarismos que redundam em precipitações que, no final, a todos prejudicam.
Contudo, este não é o ponto principal que esta acção levanta.
O ponto essencial é o ressurgimento de Sam Pa, que muitos julgavam morto ou afastado das lides devido ao combate à corrupção encetado na China, após 2012, por Xi Jinping. Vivo ou morto, a sua esfera de interesses permanece activa e dinâmica. Na verdade, basta ler a documentação junta ao processo para se ver que as sociedades Plansmart e Utter Right têm a sua vontade determinada por Lu Fong Hung, que, segundo algumas fontes, é mulher de Sam Pa ou, segundo outras fontes, alguém muito próximo de Sam Pa. Mulher ou pessoa próxima, o certo é que estas empresas representam os interesses de Sam Pa e de eventuais associados chineses dele. Em resumo, são as empresas que agiam por conta dos interesses chineses na relação com Angola.
Ora, são estas empresas de Sam Pa que agora se vêm arrogar proprietárias da CIF Angola.
Obviamente, a IF Investimentos representará interesses angolanos, sendo que os seus sócios emitiram uma procuração irrevogável a favor do general Dino.
Consequentemente, parece que estamos perante uma reacção adversa de Sam Pa (ou dos seus associados) contra os generais Kopelipa e Dino, que entregaram os activos da CIF à PGR.
Tal leva-nos a apontar duas inconsistências visíveis desde sempre na investigação destes processos relativos a fundos vindos da China.
A primeira inconsistência é a ausência de Manuel Vicente, quando é sabido, e confirmado por todas as fontes que ouvimos, que o antigo vice-presidente da República foi – primeiro enquanto PCA da Sonangol, depois enquanto ministro de Estado e da Coordenação Económica – o supervisor e controlador de todas as actividades referentes à cooperação China-Angola, designadamente, o planeamento, a organização e a execução das obrigações financeiras daí decorrentes, em concreto as que passavam pela CIF. Ora, sendo Manuel Vicente o responsável máximo por toda a dinâmica da CIF, não se percebe porque não é chamado ao processo.
Além disso, fica nítido que todos os eventos ligados à relação China-Angola, designadamente à empresa CIF, têm sempre duas partes, a angolana e a chinesa, e as duas partes colaboraram em todas as várias acções.
Portanto, se houve crime de uns, também houve crime de outros. Dito de outro modo, se Manuel Vicente e os generais Kopelipa e Dino alegadamente cometeram crimes, então, também os seus parceiros chineses (Sam Pa) terão cometido crimes e beneficiado deles. Ora, tendo a PGR ido a Hong Kong e Singapura, não se entende a razão de não ter contactado os vários chineses com interesse no tema, uma vez que sempre estiveram devidamente identificados e localizados.
A reflexão a que a acção que Benja Satula e a colega interpuseram no tribunal de Luanda nos leva é que existiu um amadorismo injustificável na investigação e actuação da PGR, o qual pode comprometer o sucesso do processo, como tem comprometido outros casos (por exemplo, o de Isabel dos Santos).
Além disso, com todo o respeito, a China também tem de ser chamada a contribuir para a solução e resolução dos problemas suscitados pela actuação dos seus nacionais. Não tem qualquer sentido processar nacionais angolanos, enquanto chineses ficam de fora e ainda processam os angolanos (visados duplamente) por terem entregado activos ao Estado angolano.
O posicionamento que alguns Estados estrangeiros estão a tomar em relação aos problemas de corrupção em Angola, fingindo que não é nada com eles e protegendo os seus nacionais, tem de acabar. Para isso, as autoridades angolanas têm de ter coragem de alargar o leque de arguidos, sejam chineses, portugueses ou marcianos. E a pergunta permanece: será que Sam Pa voltou? (.makaangola)