In: Público
Por Michael Hagedorn
28 de Março de 2023
Sábado, 18 de Março de 2023. As ruas de Maputo e de todas as capitais provinciais de Moçambique enchem-se de cidadãos que querem prestar a última homenagem ao músico Azagaia, em marchas previamente autorizadas. Com surpresa, constatam a presença maciça de forças policiais que, de imediato, atuam brutalmente, no sentido de dispersar a multidão, utilizando gás lacrimogéneo e balas de borracha.
Participantes pacíficos foram feridos e alguns presos. Em Nampula, um cidadão participante foi despido, amarrado, vendado, queimado com água quente, espancado e pontapeado durante duas horas pelas forças especiais da polícia.
Estes acontecimentos chocaram profundamente a sociedade moçambicana e várias vozes reconhecidas denunciaram a sua inconstitucionalidade.
João Feijó, investigador do Observatório do Meio Rural, afirmou, em declarações à Lusa, que as autoridades estão a “negar por completo direitos constitucionais e participação [política], de livre expressão e de liberdade de reunião”. A atuação da polícia, prosseguiu, reproduz um contexto “sinistro”, com “tiques fascistas do tempo colonial”, contra os quais a Frelimo recorreu à luta armada.
O reconhecido jornalista Fernando Lima afirmou que esta situação lhe fez lembrar a África do Sul durante o apartheid, quando a polícia usava cães e gás lacrimogéneo contra manifestantes pacíficos.
Também o Gabinete dos Direitos Humanos das Nações Unidas se manifestou contra o uso desnecessário e desproporcional da força pela polícia no meio de marchas pacíficas, pedindo a libertação imediata dos detidos e a investigação de alegadas violações.
Só três dias após a marcha, o chefe-adjunto da polícia veio justificar publicamente a ação policial, alegando “indícios” de violência por parte dos participantes. Acusou ainda as ONG, os meios de comunicação independentes e os partidos da oposição de propiciarem um ambiente de violência.
Por sua vez, o Presidente Nyusi permaneceu em silêncio durante quatro dias e, perante as críticas generalizadas, restou-lhe anunciar a realização de averiguações à ação policial, não deixando porém de referir que as mesmas também iriam recair na identificação “daqueles que procuraram aproveitar-se da virtude individual do jovem rapper Azagaia para atingir os seus intentos”.
Esta ação policial enquadra-se num ambiente de crescente repressão a críticas ao governo. Estão em preparação duas leis, uma que irá restringir a liberdade de imprensa e outra controladora das ONG. Recentemente, o Presidente Nyusi advertiu que deve ser aumentada a “vigilância” dentro da Frelimo contra infiltrantes críticos do governo.
Coincidindo com os incidentes, o último relatório anual de Direitos Humanos do Departamento de Estado dos EUA afirma, sobre Moçambique, que a impunidade e a corrupção entre as forças e autoridades de segurança moçambicanas continuam a ser “problemas significativos”. As principais preocupações em matéria de direitos humanos incluem relatos credíveis de execuções ilegais ou arbitrárias e desaparecimentos extrajudiciais” pelas forças governamentais ou pelos seus “agentes”, como milícias, em Cabo Delgado – diz o relatório.
Esta repressão crescente tem como pano de fundo a tentativa do Presidente Nyusi de exercer um terceiro mandato a partir de 2024. Isso seria inconstitucional, o que não impede a corrente dominante dentro da Frelimo, que apoia Nyusi, de o tentar por todos os meios à sua disposição.
A morte do ídolo musical Azagaia, que no seu rap “Povo no Poder” difundiu por todo o país a mensagem “Um Moçambique para todos”, preocupa fortemente a Frelimo, que há anos se dedica à “captura do Estado” e pretende manter os seus privilégios.
Moçambique foi recentemente admitido como membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU, mas dentro do país reprime manifestações pacíficas, em clara violação dos direitos humanos, da liberdade de expressão e da Constituição nacional.
A ONG Justiça Ambiental condenou o silêncio da comunidade internacional perante esta situação da seguinte forma: Use as ferramentas de partilha que encontra na página de artigo.
“E a comunidade internacional, os doadores e parceiros do desenvolvimento, as supostas referências de direitos humanos e democracia, não se pronunciam perante estes acontecimentos, ficam apenas a murmurar nos corredores, porque não convém criticar o governo do qual dependem para continuar a explorar o nosso gás, areias pesadas, carvão ou rubis.”
Como reage a União Europeia?
A UE mantém um baixo perfil diplomático (dados os múltiplos interesses geoestratégicos e nos recursos naturais dos seus Estados-membros), sem qualquer reação aos acontecimentos e concentra-se nas áreas de ajuda humanitária, desenvolvimento e militar (triplo nexo). As duas primeiras encaixam-se exactamente onde o governo moçambicano está a falhar, devido à corrupção e à má gestão (dívida ilegítima). A missão de treino militar (EUTM), aliás sob a liderança portuguesa, não teve, até agora, qualquer impacto observável no violento conflito na província de Cabo Delgado.
Coloca-se agora mais do que nunca a questão de como pretende assegurar que a força de reacção rápida que treinou e equipou em Moçambique não seja futuramente utilizada contra protestos pacíficos de cidadãos. A EUTM não deu, até à data, qualquer resposta a esta questão.
E Portugal?
De Portugal também não se ouviram reações oficiais aos dramáticos acontecimentos, por oposição às entusiásticas declarações relativas à cooperação com Moçambique, como as feitas pelo Primeiro-Ministro António Costa em Novembro passado: “O reencontro em Lisboa com o Presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, dois meses após a nossa Cimeira em Maputo, acontece num momento particularmente dinâmico do nosso relacionamento bilateral, graças ao empenho e dinamismo da nossa parceria abrangente e estratégica.”
Aquando da sua visita há um ano atrás, apesar dos já claros sinais de corrupção, violações dos direitos humanos e tendências autocráticas no governo, M.R. de Sousa enfatizava de modo acalorado: “Moçambique é sempre melhor de que era na última vez”(…) ”Moçambique tem futuro”!
O óbvio totalitarismo e a repressão em Moçambique não impedem que Portugal continue a centrar-se no florescimento dos negócios, mesmo que cúmplice de um governo que despreza os direitos do seu povo.
Para a UE e Portugal, nestas circunstâncias, aplicam-se as palavras de Desmond Tutu: “Se ficarmos neutros perante uma injustiça, escolhemos o lado do opressor”.