By Ungulani Ba Ka Khosa
Acedi, com agrado, ao convite de Luis Nhachote para apresentar este seu primeiro rebento em livro. Disse agrado, por já conhecer o Nhachote há mais de trinta anos. À época eu trabalhava no então Instituto Nacional de Cinema,agregado já à economia de mercado. Falo dos princípios dos anos 90. Nhachote era ao tempo um personagem, um individuo desassossegado no pensamento e na acção.
Admirei nele essa permanente inquietação intelectual, um espírito incandescente, e a premente necessidade em participar na abertura democrática que se construía.Decorrente disso, convidei-o, mais o seu amigo Celso Manguana, a assistir, todas as terças feiras, à projecção de filmes a estrear nas salas pelo Lusomundo, no defunto cinema Xenon. As sessões eram também um pretexto para um debate sobre as grandes questões da nova república.
Todos queríamos ser parte, como sujeitos activos, da construção da sociedade resultante da constituição de 1990 onde, entre outros articulados, se consagrava a separação de poderes, o multipartidarismo, a liberdade de imprensa,e os direitos, deveres e liberdades fundamentais. Assumimos então o que a modernidade, no sentido histórico, vinha jáconstruindo há mais de um século.
Abriram-se novos horizontes a uma sociedade ainda marcada com os excessos do centralismo democrático, da centralização excessiva do poder na mais alta figura da nação, e do pensamento vigiado.
Este Phambeni, pra frente, em tradução livre, emerge dum cenário formalmente solto das amarras censórias e do espartilho ideológico.
Luís Nhachote ousou, como jornalista afecto a um órgão independente, dirigir-se a um presidente da República por via da imprensa, Até então certas instâncias dos poderes vigentes eram de acesso restrito e vigiado; e os nossos actos sempre sujeitos a desencontradas críticas. Recordo-me que até a apropriação individual da bandeira nacional configurava delito sujeito a reprimenda. O nosso mestre Craveirinha, a propósito dos censores que zuniam como moscas, foi pertinaz ao asseverar, num poema marcante, que “Dos grandes chefes não tenho medo/ Meu receio é dos que lhes ocultam os insidiosos/ olhares nas eufemísticas vénias./Dos grandes não temas o inato orgulho./ Os erros nascem das mentiras dos outros./ O silêncio é a ponta do punhal no punho hostil da conivência.
E tivemos o nosso período de transição à pluralidade democrática. Nesse espaço temporal fomos confrontados com questões tão anedóticas, para não dizer tragicômicas.Vem-me à memória a série de encontros bastante concorridos na associação de escritores, nos quais altos dirigentes do partido único nos colocaram, entre outras,duas questões que roçavam a bizarrice: vocês querem uma sociedade pluripartidária, ou querem estar sob o manto da Frelimo? Para nós, citadinos, as perguntas não faziam sentido, mas imaginem tais questões no espaço nacional,marcadamente rural, onde a unanimidade tipificava a democracia popular.
Avancemos. Nhachote deu mão às suas cartas ao Presidente no último ano do consulado de 2 mandatos,como consignava a carta constitucional de 1990, do presidente Chissano. Estamos em 2004. Os grandes problemas com que o país se confrontava, mantinham-se àtona. Falo do consumo de drogas, área pendular nas cartas, a alta inflação, a excessiva burocracia, a inoperância das forças policiais, a crescente corrupção, os grandes obstáculos à operacionalização do recém criado Gabinete do Combate à Corrupção, a intimidação de jornalistas e outras figuras, a crescente pobreza, o enriquecimento ilícito, entre outros males. É neste quadro que Nhachote, empregando a forma epistolar como estratégia de comunicação, se dirigiu ao então Presidente da República.
O género epistolar presta-se à confidencialidade e, acima de tudo, a uma certa cordialidade. E, diga-se, para surpresa de muitos, Nhachote foi cordato, judicioso, prudente. Habituados que estávamos à grande extroversão, à incandescência na voz, à escrita trepidante e, por vezes, vulcânica, estas cartas afiguravam-se, para muitos, como um baixar de braços. Engano de muitos.
Lendo as cartas com a distância que o livro nos possibilita, fácil se torna entender o que está para além das cordiais palavras a condizerem com a serenidade e os modos diplomáticos do então presidente da República. Tendo como tema pendular a venda e o consumo de drogas na chamada Colômbia, em pleno bairro militar onde os antigos combatentes, os heróis da gesta nacionalista, os homens da vanguarda habitavam, Nhanchote foi, a seu modo,levantando grandes questões que abalaram o consulado do presidente Chissano. Passaram pela sua pena os criminosos desfalques ao Banco popular de desenvolvimento, o badalado caso do BCM, onde foram desviados mais de 144mil milhões de meticais, da antiga moeda, o risível orçamento para a construção da casa para o ex-presidente na Catembe, as centenas de mortos na cadeia de Montepuez, o acidente ferroviário de Tenga, o desvio pela polícia da droga apreendida em Inhambane, o caso Anibalzinho, entre outros.
O Presidente, a atender pelo que assinalou no prefácio, encaixou, como um bom boxeur, alguns ganchos,mas sentiu, no turbilhão da cabeça, os vários uppercut que o Nhachote foi desferindo. Alegra-me saber que passados vinte anos, o Presidente não só encaixou as investidas,como as assumiu ao dizer que “As cartas de Luís Nhachote cumpriam o espírito de tolerância. Daí que, como Presidente da República e garante da Constituição, disse aos meus assessores que o cidadão Nhachote estava em pleno exercício dos seus direitos constitucionais. Tanto é que as cartas que me eram dirigidas, semanalmente, acabaram por me acompanhar até perto do final da minha presidência, em 2004.”
É reconfortante ouvir isto de quem esteve em frente dos destinos deste país. Mais reconfortante ainda seria saber que tal espírito de tolerância se alastra até aos dias de hoje.
Infelizmente tal não tem acontecido, muito por manifesta e inepta ignorância das centenas de milhar de camaradas chefes que, como diz o Poeta, ocultam os insidiosos olhares nas eufemísticas vénias. Sejamos claros: essa gente não lê, e não escuta outra voz senão a ensurdecedora voz da ganância, do lucro, da exploração, do desafecto. Um país que não tolera o outro, não pode avançar. É triste, por exemplo ouvir por aí que um jovem escritor recebeu chamadas anónimas por ter inserido nas suas crónicas as reais e anafadas ancas do camarada chefe. E ninguém deles leu o livro. A eles, que tanto frequentam as igrejas aos domingos,aconselho-os a reterem-se nas palavras do Papa Francisco que, num recente encontro com artistas na capela sistina,em Roma, disse:
“O artista é um pouco profeta, um visionário, um homem que vê e sonha, que pelo acto criativo, revela coisas novas ao mundo. A arte é um lugar especial, um feito que nos liberta da vileza, do banal, do egoísmo, da fúria do consumismo,porque Arte, ímpeto do espírito, é vida para além do resultado, da substância, do sucesso, da vaidade. O artista deve confrontar o poder e acudir os mais fracos, os mais pobres, não se fazendo hipérbole de si próprio, usando o real para transformar o real … A arte, como o amor, salva-nos da escura noite da guerra, do ódio, da intolerância.” Papa Francisco.
Nhachote, tal como ontem, as palavras devem servir para reflectir, para questionar. O exercício de cidadania deve prosseguir, porque senão os papões do consumismo retrógrado e estulto irão campear.
Muito obrigado
Maputo, 18 de Julho de 2023
Ungulani Ba Ka Khosa