Como era de esperar, deu brado a decisão do Tribunal Constitucional que declarou inconstitucional o julgamento de José Filomeno dos Santos (Zenú), Valter Filipe (antigo governador do Banco Nacional de Angola) e outros.
As consequências desse acórdão (n.º 883/2024) ainda não são claras. Por isso, da nossa parte, afastamos as interpretações maximalistas, quer no sentido de o acórdão terminar imediatamente com o processo, quer no sentido de exigir um novo e completo julgamento.
A lei – assim como o próprio acórdão – não diz uma coisa nem outra. Apenas determina que o Tribunal Supremo tem de reformular a decisão. Isto é, tem de a modificar de acordo com a decisão do Tribunal Constitucional. O acórdão apenas manda expurgar as inconstitucionalidades.
O que nos parece mais interessante, é prever a influência que este acórdão poderá ter noutros casos, como o dos generais Manuel Hélder Vieira Dias Júnior “Kopelipa” e Leopoldino Fragoso do Nascimento “Dino”.
A peça central para a decisão do Tribunal Constitucional, no caso Zenú, foi a não admissão de uma declaração do antigo presidente José Eduardo dos Santos, seu pai. No essencial, este assumia as responsabilidades da operação que foi alvo de inquérito criminal.
Noutra ocasião, e em relação aos generais Kopelipa e Dino, o malogrado José Eduardo dos Santos remeteu à Procuradoria-Geral da República um termo de depoimento de 12 páginas, datado de 24 de Novembro de 2021, e reconhecido pelo notário.
De acordo com o ex-chefe de Estado, ambos os generais agiram sob orientação presidencial, dentro de um quadro legal definido, cumprindo instruções. Dos Santos imputou a Manuel Vicente a coordenação das actividades com a China. Em resumo, invocou o interesse do Estado e as suas orientações superiores como fundamento e limite das actuações de Kopelipa e Dino.
E esta começa a ser a grande questão com que os tribunais superiores se irão deparar: o papel de José Eduardo dos Santos nas decisões que terão levado a casos de grande corrupção e o dever que os seus subordinados tinham ou não de cumprir ordens.
No caso de crimes contra a humanidade, contra a paz, etc., desde os julgamentos de Nuremberga, em 1945-1946 que não existe esse dever. Igualmente, o Código Penal angolano, na sua actual versão (artigo 33.º, n.º 2), clarifica que não há dever de obediência em caso de ordens que impliquem crimes. No entanto, há dúvidas que subsistem. Dúvidas atendendo à legislação em vigor na época, ao papel que José Eduardo dos Santos atribui a Manuel Vicente, e em relação aos supostos objectivos de interesse nacional invocados pelo antigo presidente. São estas dúvidas que agora, face à decisão do Tribunal Constitucional, se vão colocar de modo mais incisivo. Neste momento, não antecipamos decisões, apenas colocamos questões.
Se o papel de José Eduardo dos Santos se torna central, igualmente já se percebeu, pela leitura do despacho de pronúncia, o papel determinante que Manuel Vicente desempenhou em toda a urdidura. Ora, não se trata de comentadores ou figuras terceiras a imputar-lhe comportamentos com relevo criminal, mas especificamente a própria acusação da Procuradoria-Geral da República (PGR) e a sua confirmação pelo juiz de instrução no Tribunal Supremo.
Torna-se evidente que, no respeito a que está obrigada constitucionalmente pelo princípio da legalidade, a PGR não pode deixar de acusar Manuel Vicente em processo próprio. Também, neste caso, afinal de contas, tudo dependerá da prova que for produzida, do efeito das entregas de activos que Vicente já tenha efectuado e da aplicação das Leis da Amnistia.
Outro tema que não tem sido tratado publicamente, mas que surge em abundância neste processo e também na declaração de José Eduardo dos Santos, é aquele a que chamaremos “pista chinesa”.
No despacho de pronúncia, são inúmeras as referências a comportamentos com significado criminal e participação em eventuais desvios de fundos imputados ou com a participação das empresas China International Fund (CIF), China Sonangol, entre outros veículos criados especificamente para intermediar o fluxo de fundos da China para Angola. Depois de circular na opinião pública a ideia de que estas empresas eram meras fachadas criadas por Vicente, Kopelipa e Dino, percebe-se agora que não é assim. Personalidades chinesas assumem também um papel altamente relevante na criação e condução destas empresas.
Aparece agora uma cidadã chinesa – habitualmente designada como Madam Lo Fong Hung – a reivindicar uma parte da propriedade dessas empresas. Esta senhora diz que representa as autoridades chinesas e que foi, a seu tempo, mandatada pelo governo chinês para criar várias empresas como fachada para entrar em Angola. Tem explicitado a entrada dessas empresas em Angola como cumprimento de instruções confidenciais do Partido Comunista Chinês. Mais declara que trabalharia directamente para o Comité Central do Partido Comunista da China. Explica que a sua acção obedeceu a um interesse explícito chinês para quebrar o padrão estratégico dos Estados Unidos e dos países ocidentais em África e Angola, razão pela qual o Estado chinês teria criado as empresas, de modo a manter o segredo. A sua missão em Angola teve de ser disfarçada como um empreendimento comercial privado, para não suscitar objecções por parte dos rivais estratégicos da China. Madam Lo Fong Hung tem feito essas afirmações quer em processos judiciais que estão a correr o seu curso nos tribunais de Hong-Kong em que fez declarações públicas, quer numa reunião de negociações que decorreu em Singapura, a 17 de Maio de 2023, com a directora do Serviço Nacional de Recuperação de Activos da PGR, Eduarda Rodrigues Neto.
Portanto, a história de Madam Lo modifica o contexto dos negócios da China em Angola. Atribui ao governo chinês um papel muito mais activo do que se pensaria, através da formação e utilização das empresas privadas para concretizar os fluxos financeiros com Angola. Responsabiliza o seu país e os seus oficiais pela opacidade, possível desvio e apropriação individual de fundos públicos que ocorreu em Angola.
Se a versão de Madam Lo estiver correcta, torna-se evidente que estamos perante uma questão de Estado – e não um mero caso de polícia –, com implicações legais no pagamento da dívida pública de Angola para com a China.
Contudo, é por demais estranho que uma suposta oficial do governo chinês venha agora anunciar o seu estatuto, explicando em público e para quem quiser ouvir as eventuais ou possíveis operações secretas do governo chinês e assim prejudicando a imagem e os direitos legais desse próprio governo. Tem de haver cautela e não aceitar acriticamente e à letra as variadas afirmações de Madam Lo. Por outro lado, essas afirmações não podem ser ignoradas, havendo o dever de entender toda a trama que envolveu as relações financeiras Angola-China, que, como se sabe, impõem actualmente um peso desmesurado no Orçamento Geral do Estado angolano. Os factos documentados e aqui enumerados lançam uma série de dúvidas e sugerem uma investigação que outros, com a devida capacidade política, deveriam aprofundar. Acreditamos que está em causa o superior interesse nacional angolano.