É uma das maiores regiões bravias africanas e uma daquelas de que o mundo nunca ouviu falar. Foi preservada, em parte, pelo isolamento, mas ainda tem marcas da guerra civil que assolou o País durante 16 anos e terminou oficialmente em 1992. É lar de espécies emblemáticas da África Oriental como elefantes, búfalos, leões e mabecos, além de curiosidades como a zebra de Böhm, a impala de Johnston e o gnu do Niassa. As suas vastas planícies assemelham-se a peças bordadas com zonas de mato, floresta e planícies de aluvião, pontilhadas por inselbergs graníticos, afloramentos rochosos que se erguem em terra como galeões no mar. Desde tempos pré-históricos que as pessoas vivem e negoceiam na região. A presença dos Yao, por exemplo, remonta a tempos antiquíssimos. É um dos grupos étnicos que vivem na reserva, a par dos macuas, ngoni, matambwe e macondes.
Os Yao possuem uma cultura que pulsa com uma ligação animista à natureza, depois fundido com o Islão. Viviam do mato e dos rios, caçavam animais selvagens, recolhiam mel, apanhavam fruta e plantas medicinais. Acrescentaram a agricultura às suas rotinas, cultivando milho, amendoim, feijão, sésamo e outras culturas lucrativas, como o tabaco. Muitas comunidades do Niassa continuam a viver da terra, em conjunto com os gestores da reserva – a Administração Nacional de Áreas de Conservação de Moçambique (ANAC) e a Wildlife Conservation Society. Um sistema de licenciamento limita quando, onde e como podem ser capturados os peixes para permitir a sua reprodução e assim prevenir a extinção de espécies. Em terra, há vigilâncias mais apertadas sobre a proibição de caça de animais selvagens. Há incentivos à criação de patos, galinhas e coelhos como fontes de proteína alternativas e também como forma de rendimento sustentável.
Numa manhã de Novembro, na estrada perto de Mbamba, pescadores empurram bicicletas até ao mercado ao longo da estrada poeirenta que os aldeãos partilham ocasionalmente com vários ‘peões’ de quatro patas – elefantes, leões, antílopes – depois de terem passado semanas num acampamento, 15 quilómetros a jusante, no rio Lugenda. Os cestos de bambu encaixados nas bicicletas estão cheios de nyingu (Labeo molybdinus) e campango, um peixe-gato de água doce capturado com redes no rio. Estes peixes já foram secos e fumados sobre uma fogueira no acampamento. A alquimia da cura conferiu um tom cor de estanho às suas escamas e o corpo ficou seco como um pergaminho, permitindo a sua conservação durante semanas.
Nos últimos anos, a extracção ilegal de marfim abrandou e os vigilantes da natureza e os aldeãos relataram a existência de maiores manadas de elefantes, com mais crias e mais jovens
Para os Yao, os peixes são mais do que uma mera fonte de proteína. São tão valiosos como moedas recém-cunhadas. Os aldeãos trocam o peixe por óleo alimentar, arroz e até roupa no mercado local. Mbamba ainda está ligada às rotas comerciais ancestrais que atravessavam a região, permitindo aos pescadores vender parte da sua captura a mercadores de outros locais da reserva e mais além. “Há pessoas que vêm de Cabo Delgado”, a leste, diz Benvindo Napuanha, director comunitário do Projecto dos Carnívoros do Niassa (NCP), uma iniciativa de conservação criada em 2003. “Até há pessoas da Tanzânia a comprar este peixe”, acrescenta.
Proteger a vida selvagem, em conjunto
Novembro é tão desconfortável nesta região de Moçambique que, por vezes, lhe chamam o “mês suicida”, quando as chuvas estão iminentes e o mercúrio sobe acima de 38 graus centígrados. Numa manhã, um grupo de aldeãos parece ignorar o calor, enquanto escora uma secção de muro ao longo de uma trincheira de quatro quilómetros, escavada em redor de Mbamba há dois anos. Com cerca de dois metros de profundidade, o fosso seco impede a entrada de elefantes e búfalos. A aldeia encontra-se a sul da reserva, trabalha com o NCP e convive com o Centro Ambiental de Mariri, dez quilómetros a leste. O projecto foi financiado em grande parte por mecenas e pretende encontrar formas para as comunidades da reserva viverem em harmonia com os animais de grande porte e contribuírem para a sua protecção.
Em 2012, os líderes de Mbamba assinaram um acordo com a Mariri Investimentos, a organização que dirige o projecto, e arrendaram uma concessão de conservação com 580 quilómetros quadrados em redor da aldeia. O resultado foi uma parceria inovadora: “Tchova-Tchova” (que significa “tu empurras, eu empurro”). O objectivo é aumentar os rendimentos e a produção alimentar da comunidade e envolver os aldeãos em projectos de conservação, permitindo-lhes também gerir bens essenciais como água, energia solar, ensino para as crianças e protecção da criação de animais. Graças à parceria “Tchova-Tchova”, os habitantes de Mbamba conseguem empregos na manutenção de estradas, como vigilantes da natureza no centro ambiental ou ainda no Mpopo Ecolodge, um empreendimento turístico em construção.
Além disso, os aldeãos são incentivados a proteger a vida selvagem. A parceria “Tchova-Tchova”, entre Mbamba e a Mariri, pretende travar a caça furtiva para obtenção de alimento na reserva. Desde a sua criação, o número de armadilhas para capturar animais selvagens diminuiu drasticamente. Leões, leopardos, mabecos e muitos outros animais estão a recuperar. O ecossistema recompõe-se.
Este é o tipo de parceria comunitária que a ANAC espera das concessionárias, conservacionistas e ONG, diz Terêncio Tamele, administrador do Niassa. “Faz parte do contrato e da avaliação de desempenho das concessionárias”, afirma. A colaboração poderá incluir programas de conservação, saúde, formação e emprego, contribuindo para manter a natureza intacta.
Há pouco mais de uma década, cerca de 12 mil elefantes deambulavam pelas terras bravias do Niassa, mas em 2018 a febre da caça ao marfim reduziu o seu número estimado para 3150 animais. Nos últimos anos, a extracção ilegal de marfim abrandou e os vigilantes da natureza e os aldeãos relataram a existência de manadas maiores, com mais crias e mais jovens. O número de elefantes aumentou para quase 4000. Na área em redor de Mbamba, a trincheira contra elefantes dos aldeãos é a primeira do seu género construída no Niassa: um método não letal de prevenir encontros desastrosos.
Texto National Geographic • Fotografia D.R.