A tendência de se buscar a todo custo um bode expiatório (numa confusão, num problema ou numa briga), é frequente em sociedades com pouco senso crítico. Quando se trata de uma sociedade que não quer assumir a sua responsabilidade, corrigir o erro cometido e reverter a situação ao seu favor, sempre haverá um bode expiatório. Usemos a razão, o miolo que todos temos para assumir que erramos e busquemos resolver o problema que Moçambique vive. Somos um povo passivo e empobrecido. Não somos pacíficos porque vivemos mais anos de guerra que de paz e de tranquilidade. Atenção, saibamos que a paz que as crianças sonham depende dos adultos que hoje provocam e pensam na guerra.
Desde que Moçambique iniciou com o assunto de eleições em 1994, a confusão pós pleito eleitoral é cada vez mais acentuada. Sem nos escondermos na amnésia coletiva, temos que discutir o problema real: o povo e o país nunca viveram nem sentiram a democracia propriamente dita.
A que se deve esta falta de avanço depois de quase trinta anos? Quem é o culpado das fraudes, das irregularidades e dos ilícitos eleitorais que culminaram em resultados adulterados?
Na contagem dos votos, não convidaram os mesmos que falharam os livros escolares ou os que não sabem calcular a Tabela Salarial Única, o fantasma e pesadelo apelidado por “TSU”?
Nas redes sociais e em várias manifestações, encontrou-se o bode expiatório, o bispo anglicano, Dom Carlos Matsinhe que aceitou o desafio de presidir um dos órgãos mais desacreditados em Moçambique, a Comissão Nacional de Eleições, CNE.
Na verdade, são poucos os órgãos do Estado que são acreditados em Moçambique e se calhar não temos ou temos poucos.
Dom Matsinhe, sendo moçambicano, sabia do fogo que estava a receber nas mãos quando aceitou presidir a CNE. Ele sabia que estaria a conduzir um carro com pneus careca, mas camuflados de novos, para sofrer o sinistro orquestrado por um sistema. Ele sabia que seria levado ao matadouro como um bode expiatório. Ele sabia que perderia sono de muitas noites sem dormir. Ele sabia que depois ficaria isolado, sem amigos nem irmãos da mesma fé.
Quanto a mim, Dom Matsinhe tem culpa por aceitar liderar a CNE e não por aquilo que fez ou deixou de fazer. Ele está num esquema montado por outros. Imagine, se alguém estivesse no lugar dele, o que faria com os perigosos ao seu lado?
A meu ver, sem defender um nem julgar outro, todos somos culpados porque, sabendo do tipo de sistema que temos no país, não deveria se deixar nenhum espaço para as manobras que favorecem uma parte e colocam no inferno a outra.
Iniciando pelo recenseamento eleitoral até à contagem dos votos, deveria haver fiscalização e protestos em caso de irregularidades para que nenhuma manobra seja executada.
Os funcionários do Estado que sempre foram usados para beneficiar o regime, já estão exaustos e querem uma mudança urgente.
O povo que vive na miséria quer experimentar algo novo.
Os camaradas da última fila já começam a sentir que são instrumentalizados contra seus próprios irmãos.
Porém, falta a coragem de abraçar a causa defendida pelos jovens nas diferentes ruas de Moçambique e outros que perderam a vida como heróis, mas foram levados ao fracasso porque ainda não há unidade e comunhão de ideais.
O ponto de partida é sair da covardia para alcançar-se o bem maior: a democracia concebida por vários homens e mulheres do bem.
Os mais de trinta milhões de moçambicanos não poderão jogar a culpa ao homem que hoje se encontra numa rua sem saída. Se ele vai continuar vivo ou não, depende da vontade dos detentores do poder.
Contudo, após a breve reflexão, podemos concluir que de fato, todos somos culpados, mas podemos sair da culpa e salvar a pátria amada.
A seguir vou apontar o que acho serem motivos graves que impedem que Moçambique alcance a democracia.
1. Sistema único implantado em 1975
Quando o país alcançou a independência, houve a sugestão para a introdução do multipartidarismo e consequente vivência da democracia. Havendo resistência, em 1977, começou a guerra entre a Frelimo e a Renamo. No final da guerra, em 1992, descobriu-se que, embora toda guerra não tenha o seu motivo de ser, a Renamo queria a democracia em Moçambique. Com muito sangue derramado, o país viu o calar das armas, mas a briga continuou porque o que foi assumido nos Acordos de Paz em Roma, vem se arrastando sem seu cumprimento, ou cumpriu-se parcialmente.
O sistema implantado em 1975 continua firme e intocável, e sequestrou o Estado. Como disse Severino Ngoenha, observa-se a partidarização do Estado e o sucateamento das instituições do Estado.
2. Intolerância política e perseguição da oposição
Apesar da introdução do multipartidarismo, temos vivido um fenómeno de intolerância política. Ser da oposição é visto como um “inimigo da pátria”.
Quantos membros da oposição foram executados? Nesses trinta anos, milhares de pessoas da oposição e da sociedade civil foram executadas por apresentarem pensamentos contrários aos daqueles que se chamam “donos da pátria”.
Tem havido igualmente o enfraquecimento dos partidos políticos e perseguição dos seus membros.
Quando se observa um quadro bastante brilhante em algum partido político, usam todas as artimanhas para o “calarem a boca”.
3. Autoritarismo e ditadura militar
Perpetuar-se no poder é o lema de um sistema autoritário. Moçambique vive o fenómeno de partido único que simula aceitar a democracia e a liberdade de expressão, mas todos que tentaram viver os tais direitos tiveram um fim trágico.
A ditadura militar verifica-se em cada tentativa de manifestação pacífica. A violação dos Direitos Humanos é o pão de cada dia.
Observa-se também a perseguição dos defensores dos pobres e de muitos ativistas sociais.
4. Justiça que comete injustiça para favorecer o sistema
A falta de separação dos poderes conforme consta na Constituição da República (executivo, legislativo e judicial) prejudica o país. O PR tem poder absoluto. Os demais poderes estão ao serviço do executivo e não ao serviço do Estado e do povo.
A nomeação, por exemplo, do Procurador Geral da República segue na linha de “estafeta” de quem o nomeou.
Os parlamentares discutem a agenda partidária e não para favorecer o povo. O silêncio do poder judicial é tão arrepiante que quando surge alguém dizendo que é Procurador ou Juiz, acaba sendo zombado.
5. Parcialidade dos órgãos eleitorais
Seguindo o mesmo problema da falta de autoridade e autonomia dos demais poderes, o modelo de criação dos órgãos eleitorais é falido porque a maioria sempre está ao serviço dos seus partidos.
Os membros que representam a sociedade constituem a minoria. Por isso, sua presença é insignificante.
6. Passividade do povo
Ligado ao problema da falta de liberdade de expressão, o povo vive um medo que se tornou uma doença.
A repressão das diversas manifestações pacíficas pela Polícia e outras forças de segurança governamental, alimentou o medo. E o povo cada vez mais vive na passividade. Entretanto, tem havido uma forma grave de manifestação: as guerras (terrorismo e os diferentes tipos de ataques armados, como os que foram perpetrados pela Renamo no passado recente).
Se o país optar pela paz, então deve abrir-se espaço de manifestação pacífica, diálogo e resolução dos problemas apresentados.
7. Silêncio da comunidade internacional
Em todas as eleições, tem havido observadores internacionais. Moçambique tem embaixadas de diferentes países que têm relações bilaterais. Contudo, o silêncio da comunidade internacional deixa de ser de respeito pela soberania. Entende-se que cada país tem sua soberania, mas ao serem convidados para tomar a missão de observadores, deveria haver a seriedade, imparcialidade e transparência nos relatórios apresentados.
Portanto, a meu ver, deve haver o despertar do povo para se evitar o sacrifício de um bode expiatório.
O povo deve sair da passividade para agir pacificamente em prol do bem-estar de Moçambique. Não adianta continuar a lamentar-se sabendo que o poder pertence ao povo.
A mudança começa em cada moçambicano que deseja o bem comum.
Servo inútil,
Pe. Kwiriwi, CP