Comecemos pelo óbvio. O vandalismo é, sem dúvida, um crime. A legislação angolana é clara e severa na sua punição, reflectindo a necessidade de manter a ordem pública e proteger os bens comuns. A sua prática reiterada representa não apenas uma afronta ao Estado de direito, mas também uma ameaça à estabilidade da ordem constitucional.
Nos últimos tempos, este discurso tem sido reiterado a propósito dos eventos ocorridos em Luanda durante a greve dos taxistas. E é certo que, numa primeira leitura, temos perante nós uma questão de segurança pública que exige uma resposta das forças policiais e da justiça.
Contudo, esta leitura, embora válida, é insuficiente. Não chega e não resolve nada.
Reduzir o fenómeno do vandalismo à mera ilegalidade é ignorar a sua profundidade política e social. Em Angola, os actos de vandalismo não surgem como fenómenos isolados, mas sim como consequências de um sistema que tem falhado em garantir condições mínimas de dignidade à maioria da população.
O vandalismo é, em muitos casos, expressão da frustração colectiva diante de promessas políticas não cumpridas. Sobretudo depois da esperança de 2018/2019, é também fruto de décadas de desigualdade social, de políticas económicas desconectadas da realidade concreta do país – inspiradas num Fundo Monetário Internacional que tende a ignorar a história, o contexto e as instituições de cada país – e, acima de tudo, do abismo cada vez maior entre a vida faustosa das elites dirigentes e a miséria do povo.
O cidadão comum, esmagado pela inflação, pelo desemprego e pela escassez de serviços públicos, assiste ao desfile de carros de luxo e mansões opulentas dos seus governantes como quem vê um mundo paralelo e inacessível. Esse contraste é mais do que um insulto: é uma ferida aberta que alimenta a revolta social. O que é juridicamente um crime torna-se politicamente um grito desesperado por reconhecimento.
Episódios semelhantes têm ocorrido em outras geografias africanas lusófonas, como em Moçambique, onde a falta de transparência do processo eleitoral fez explodir o país.
Estas manifestações, longe de serem simples actos de delinquência, são sinais evidentes de tensões sociais profundas, que exigem respostas políticas imediatas e estruturantes. O erro comum tem sido tratar o sintoma — o vandalismo — com repressão, ignorando a doença — o sistema desigual e excludente que o gera. Erro em que o recente comunicado do MPLA sobre os eventos de segunda-feira, dia 28 de Julho, cai absurdamente.
A repressão policial, por mais eficaz que possa parecer no curto prazo, não elimina as causas. Pode conter os surtos momentâneos, mas, sem uma transformação estrutural, novos episódios irão inevitavelmente surgir.
A solução não está na força, mas na escuta, na justiça e na coragem política para enfrentar os problemas de frente. A paz social não se constrói com gás lacrimogéneo, mas com pontes.
Angola precisa urgentemente de uma remodelação profunda no seu governo. Vários ministros, da área económica e social, devem ser imediatamente demitidos. Novas caras, novas ideias e novas práticas são imperativas. Mas não basta trocar figuras – é preciso mudar mentalidades, quebrar a cultura de ostentação e promover uma liderança verdadeiramente comprometida com o serviço público.
A introdução das eleições autárquicas é imperativa agora, por ser uma poderosa ferramenta nesse processo, ao trazer os cidadãos para o centro da política, promovendo diálogo directo entre as comunidades e o Estado. Quando o poder é partilhado com quem vive o dia-a-dia das dificuldades, as decisões tornam-se mais humanas, mais eficazes e mais legítimas.
Para além da reforma institucional, é vital reforçar os canais de comunicação permanente com a sociedade. Criar espaços onde a voz do povo seja escutada com seriedade, onde as preocupações sejam atendidas e as soluções sejam construídas de forma participativa. Valorizar a escuta activa é reconhecer que o conhecimento da realidade não está apenas nos gabinetes ministeriais, mas também nas ruas, nos mercados, nos bairros periféricos, onde se vive a dura realidade angolana.
Ignorar estes passos é correr o risco de transformar o confronto entre governo e “vândalos” numa guerra fratricida. Uma guerra onde não há vencedores, apenas perda — da coesão social, da confiança institucional e, acima de tudo, da esperança. O vandalismo, neste contexto, é um apelo desesperado por dignidade. E a dignidade não se impõe com autoridade; constrói-se com justiça social, com oportunidades reais, com políticas públicas sensíveis e com coragem para mudar.
Portanto, o debate sobre o vandalismo não pode resumir-se à criminalização. Deve abrir espaço para uma reflexão profunda sobre o modelo de sociedade que se está a construir. Uma sociedade onde muitos vivem à margem – sem acesso a educação de qualidade, saúde adequada, emprego digno e participação política efectiva – está fadada ao conflito.
O verdadeiro desafio, para Angola, é reconhecer este apelo oculto, este clamor por respeito e inclusão, e responder-lhe com a grandeza que se exige: construindo um país mais justo, mais equilibrado e verdadeiramente baseado no consentimento popular.

