Por Tiago J. B. Paqueliua
RESUMO
O presente artigo examina a crescente militarização ecológica e a crise securitária nos Parques e Reservas Nacionais de Moçambique, tomando como caso emblemático o agravamento do conflito homem/fauna bravia em Marromeu (Sofala), onde mais de vinte e sete mil búfalos convivem com comunidades camponesas sitiadas pelo medo e pelo abandono estatal. À luz da notícia da Rádio Moçambique (10/11/2025) e do contexto mais amplo de violência em Cabo Delgado, o artigo propõe uma leitura integrada que articula colonialismo ambiental, exclusão verde e impunidade ecológica, sugerindo que a insegurança vivida nas zonas tampão é reflexo direto da geopolítica extrativista que sacrifica tanto o homem quanto a natureza em nome do lucro e da imagem turística.
Palavras-chave: conflito homem-fauna; segurança ecológica; apartheid verde; extrativismo; colonialismo ambiental; Moçambique.
1. INTRODUÇÃO: QUANDO O ECOLOGISMO MATA
Em novembro de 2025, o diretor do Serviço Distrital das Atividades Económicas de Marromeu, Júlio Lapissone, alertou que a Reserva Nacional do distrito abriga “mais de vinte e sete mil búfalos”, situação que, segundo ele, “tem criado problema, porque na medida em que o tempo passa vão se reproduzindo, e começa já a surgir este conflito”. Só no primeiro semestre do ano, registaram-se vinte e dois casos de ataques, resultando em seis mortes (RÁDIO MOÇAMBIQUE, 2025).
Esses números, que deveriam provocar uma resposta política imediata, são tratados com uma normalidade perversa. O que se revela é um Estado que, em nome da conservação, abdica da proteção de seus cidadãos — transformando o camponês em refém da fauna bravia e da burocracia ecológica.
2. A RESERVA COMO CAMPO DE CONFLITO
Marromeu tornou-se o espelho de uma tensão estrutural: de um lado, a fauna “protegida” e monitorada por políticas de conservação desenhadas em gabinetes internacionais; de outro, populações rurais que veem suas machambas devastadas e seus familiares mortos sem qualquer compensação.
O aumento da população de búfalos — apresentado como sinal de sucesso da conservação — é, na verdade, sintoma de desequilíbrio ecológico e social. Sem gestão comunitária efetiva, a reserva transforma-se em território de exceção, onde a vida humana é secundária. Trata-se de uma guerra não declarada: uma guerra ecológica em que os mortos não são reconhecidos como vítimas de violência ambiental.
3. DO NORTE AO CENTRO: AS DUAS FACES DA MESMA GUERRA
A insegurança de Marromeu ecoa a tragédia de Cabo Delgado. Em ambos os contextos, o Estado mostra-se incapaz de proteger os cidadãos — seja dos insurgentes armados, seja dos animais selvagens. Em ambos os casos, as populações são deslocadas, as culturas destruídas, e o território entregue a interesses externos.
Enquanto forças estrangeiras — como as tropas ruandesas financiadas pela União Europeia e pela França — garantem a segurança das zonas de exploração de gás e minerais, as comunidades rurais enfrentam sozinhas o terror cotidiano dos ataques de elefantes, búfalos, leões ou crocodilos. O paralelismo é claro: a guerra armada e a guerra ecológica compartilham o mesmo mapa da injustiça.
4. A BANALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA ECOLÓGICA
O discurso oficial celebra o “crescimento populacional da fauna” como conquista ambiental, mas omite que tal crescimento ocorre à custa da expulsão dos povos que sempre coexistiram com esses ecossistemas. Assim como na lógica colonial, o humano africano é visto como ameaça à natureza — e a natureza, paradoxalmente, como aliada do capital.
Quando um búfalo mata um camponês, o Estado lamenta, mas não indeniza. Quando um terrorista mata um trabalhador, o Estado promete reintegração e diálogo. Em ambos os casos, a impunidade é o cimento da injustiça.
5. DO APARTHEID VERDE À SEGURANÇA SELETIVA
A política de conservação em Moçambique consolida um apartheid ecológico: populações pobres confinadas às zonas tampão, enquanto elites locais e investidores estrangeiros se beneficiam dos parques como enclaves turísticos e laboratórios de captura de carbono.
A chamada “segurança ambiental” é, na prática, uma segurança seletiva — voltada à proteção de infraestruturas, turistas e concessões privadas, não das comunidades. A natureza é militarizada para servir o capital, não para defender a vida.
6. QUANDO O ESTADO PERDOA OS AGRESSORES
O precedente histórico é perigoso. Desde a independência (1975), Moçambique tem praticado o perdão político sem justiça: dos combatentes da RENAMO aos insurgentes de Cabo Delgado, o ciclo de impunidade perpetua-se. O mesmo ocorre na esfera ambiental: crimes ecológicos, mortes por ataques de animais e destruição de culturas camponesas nunca chegam a tribunal.
A ausência de justiça retributiva ambiental revela uma profunda hierarquia de valores — em que a vida humana rural vale menos que a imagem internacional de “país verde e sustentável”.
7. JUSTIÇA ECOLÓGICA E REPARAÇÃO TERRITORIAL
Para romper este ciclo, é urgente instituir políticas de responsabilidade ecológica participativa, com:
Criminalização da negligência ecológica estatal, equiparando-a a omissão dolosa;
Fundo de Indenização por Conflito Faunístico, financiado com parte das receitas do turismo e das concessões de conservação;
Co-gestão comunitária obrigatória nas reservas, com direito de veto em decisões que afetem os modos de vida locais;
Educação ecológica crítica, que recuse a lógica “homem versus natureza” e promova a “ecologia trinitária” — coexistência entre pessoas, fauna e território.
8. CONCLUSÃO: O FUTURO COMO CAMPO DE RESISTÊNCIA
A violência ecológica que hoje se vive em Marromeu é apenas a superfície de uma crise mais profunda: a crise do modelo de conservação herdado do colonialismo e reconfigurado pelo neoliberalismo verde.
Se o Estado continuar a tratar a fauna como patrimônio e o povo como obstáculo, os parques nacionais tornar-se-ão cemitérios da justiça e laboratórios de exclusão. A verdadeira preservação exige descolonizar o pensamento ambiental e reumanizar a natureza.
Enquanto o búfalo continuar mais protegido que o camponês, a paz ecológica será apenas retórica — e a natureza, uma arma apontada contra os pobres.
REFERÊNCIAS
1. RÁDIO MOÇAMBIQUE. Autoridades de Marromeu preocupadas com o aumento de conflitos homem/fauna bravia. Emissão de 10 de novembro de 2025.
2. PAQUELIUA, Tiago J.B. Colonialismo e Apartheid Ecológico em Moçambique: o caso das zonas tampão dos Parques Nacionais. 2025.
3. HARVEY, David. The New Imperialism. Oxford: Oxford University Press, 2003.
4. SHIVA, Vandana. Earth Democracy: Justice, Sustainability and Peace. Cambridge: South End Press, 2005.
5. NEVES, João A. Justiça ambiental em África Austral: entre a ecologia e a colonialidade. Revista Direito & Sociedade, v. 32, n. 3, 2020.
6. CISTAC, Gilles. Constituição da República de Moçambique anotada. Lisboa: Escolar Editora, 2014.
7. UNITED NATIONS. Declaration on the Rights of Indigenous Peoples. New York: UN, 2007.
