Depois de longos anos de espera, a Procuradoria-Geral da República (PGR) de Angola produziu a acusação criminal contra Isabel dos Santos e outros acerca dos factos referentes à sua presidência da Sonangol (2016-2017).
Trata-se da acusação no processo n.º 48/2019, em que são arguidos Isabel dos Santos, Sarju Chandulal Raikundalia, Mário Filipe Moreira Leite da Silva, Paula Cristina Fidalgo Carvalho das Neves Oliveira e a PriceWaterhouseCoopers & Associados – Sociedade de Revisores de Contas Lda (PWC Angola).
Todas as pessoas singulares, com excepção de Isabel dos Santos, têm nacionalidade portuguesa, sendo que Mário Leite da Silva é, actualmente, um dos administradores do Correio da Manhã, portanto, pessoa influente em Portugal.
A Isabel dos Santos são imputados 12 crimes: um crime de peculato, um crime de burla qualificada, um crime de abuso de poder, um crime de abuso de confiança, um crime de falsificação de documento, um crime de associação criminosa, um crime de participação económica em negócio, um crime de tráfico de influências, dois crimes de branqueamento de capitais, um crime de fraude fiscal e um crime de fraude fiscal qualificada.
Os factos são descritos na acusação com evidente detalhe e minúcia, notando-se uma assinalável evolução técnica nas peças apresentadas pela PGR desde o primeiro destes processos, a “Burla Tailandesa”.
A essência da acusação reside na época em que Isabel dos Santos foi presidente do Conselho de Administração da Sonangol, entre 2016 e 2017. A história é simples e na sua generalidade já conhecida. A PGR alega que Isabel dos Santos, em conluio com os restantes arguidos, montou um esquema de desvio de fundos da Sonangol que consistia em criar várias empresas-fantasma de consultoria, algumas sem qualquer historial ou trabalho, para as quais, muitas vezes sem contratos válidos ou suportes contabilísticos, foram transferidos avultados montantes da petrolífera.
Nas contas apresentadas pela PGR, terão sido desviados mais de 200 milhões de dólares em pouco menos de dois anos. As empresas utilizadas para canalizar esses fundos são várias, mas destaca-se a IRONSEA (a dada altura chamada MATTER), que foi criada no Dubai a 1 de Fevereiro de 2017, e que a PGR afirma ser uma empresa desprovida de capital e de garantias para assegurar pagamentos, não tendo capacidade técnica para executar o controlo e a coordenação do Projecto de Reestruturação da Sonangol EP e suas subsidiárias.
Rocambolescos parecem ser os factos surgidos por altura da exoneração de Isabel dos Santos por parte de João Lourenço, em Novembro de 2017. Segundo a acusação, a exoneração levou a uma “atitude desenfreada dos arguidos Isabel dos Santos, Mário Silva, Paula Oliveira e Sarju Raikundalia, [originando] que a IRONSEA/MATTER emitisse facturas desde 29 de Maio de 2017, antes mesmo da assinatura do fraudulento contrato celebrado a 10 de Novembro de 2017 entre a MATTER e a Sonangol Limited, fazendo crer que a IRONSEA/MATTER e os seus Consultores já prestavam serviços à Sonangol EP, sem existir um contrato válido para o efeito”.
O nosso papel não é sustentar a acusação nem a defesa, mas procurar apresentar ao público, de forma imparcial, os factos e proceder a alguma análise, ainda que breve. Entendemos, além do mais, que se trata de um tema de interesse público muito relevante.
Do ponto de vista da acusação, é claro que a PGR teve um especial cuidado com esta peça, que parece mais bem elaborada e metódica do que outras anteriores, como referido.
Em relação à defesa, coloca-se desde logo uma questão que é a do sentido e alcance da Lei da Amnistia de 2023. Esta lei amnistia todos os crimes comuns puníveis com pena de prisão até oito anos no período de 12 de Novembro de 2015 a 11 de Novembro de 2022, com excepção de alguns crimes, entre os quais se destacam crimes de peculato, de corrupção, de recebimento indevido de vantagens, de participação económica em negócio, de abuso de poder, de tráfico de influência, de branqueamento de capitais.
Quer isto dizer que, tendo os crimes imputados a Isabel dos Santos ocorrido no período de tempo previsto pela lei, alguns deles já estarão amnistiados. A PGR teria poupado tempo e trabalho aos tribunais se tivesse desde logo identificado quais os que estão abrangidos por essa lei. Por exemplo, parece-nos que o crime de falsificação de documentos (art.º 251.º do Código Penal) estará amnistiado.
Além do mais, fica sempre aquela dúvida metódica sobre o papel de José Eduardo dos Santos nisto tudo. Até que ponto Isabel dos Santos actuou por sua conta e risco ou obedecendo a alguma estratégia delineada pelo antigo presidente da República?
É evidente que estes julgamentos das pessoas politicamente influentes no tempo de José Eduardo dos Santos têm uma componente política que não pode ser escamoteada. Seria mais corajoso enfrentá-la do que circundar o tema.
Muitos aproveitarão para invocar Manuel Vicente e a questão da selectividade das acusações, afirmando que a ausência de qualquer acusação contra Manuel Vicente, que já não goza de imunidade, é sinal de que o processo judicial está eivado de considerações políticas. A verdade é que o PGR já anunciou que o processo contra Manuel Vicente está a ser instruído. E neste caso concreto, ao contrário do caso Kopelipa/Dino, Vicente está totalmente fora do assunto. Em todo o caso, a futura existência ou não de acusação contra Manuel Vicente sobre outros temas é o grande teste sobre a legalidade da actuação da PGR.
Finalmente, há um aspecto internacional a sublinhar. A maior parte dos arguidos são portugueses e vivem em Portugal. Dificilmente se conseguirá levá-los a julgamento em Angola. Será que o país vai delegar na justiça portuguesa o seu julgamento, como definem as regras internacionais assinadas entre ambos (Angola e Portugal) e como Portugal fez em relação a Manuel Vicente? A isto acresce que o banco português EuroBic é mencionado sete vezes na acusação, indiciando, eventualmente, alguma participação em actos de branqueamento de capitais. Qual será a reacção das autoridades portuguesas? E será que em Portugal os processos contra Isabel dos Santos avançarão finalmente? (https://www.makaangola.org)